Hahnemann vai para Paris

Não existem doenças, existem doentes.”

Em 1832, aos 77 anos, diante do enorme sucesso que a Homeopatia vem angariando, seus opositores contra-atacam. Um certo Dr. Kaiser pede a interdição das 4 obras de Hahnemann sobre a cólera, alegando que determinadas passagens são ofensivas aos médicos. O duque Henrique, que sucedera o duque Ferdinando, não é simpático à Homeopatia como seu antecessor e repreende Hahnemann por manipular medicamentos, privilégio que lhe fôra concedido oficialmente, e proíbe a venda dos livretos sobre a cólera no ducado.

Somou-se a este problema profissional uma nova dor no âmbito pessoal. Sua quinta filha, Frederica, é assassinada em Leipzig, onde vivia sozinha após enviuvar de seu segundo marido. Sua casa foi assaltada e ela foi morta no jardim. Este fato o abate muito, mas não se permite parar com suas atividades.

Em julho deste ano recebe o Dr. Gottfried Lehmann, um médico de 43 anos, com sua esposa e suas duas filhas. Ele próprio exercia a Homeopatia, mas vem consultar o mestre a respeito da saúde de sua esposa. Há uma simpatia mútua entre os dois médicos e Hahnemann o convida para ser seu assistente, assoberbado que estava com o grande afluxo de pacientes vindo de toda a Europa. A escolha foi muito feliz, mas mesmo assim ambos não davam conta do afluxo crescente de pacientes.

Hahnemann divide seu tempo entre o consultório e a revisão que faz do Organon para lançar a sua 5ª edição, a última publicada em vida. Nesta edição introduz a noção de “Força Vital” ou “Dynamis”, cujo desequilíbrio levaria à doença. O papel do médico é restabelecer o equilíbrio da força vital, através de um remédio que atue dinamicamente sobre ela.

Neste mesmo ano, o 1º hospital homeopático abre suas portas em Leipzig, apesar da sempre aguardada oposição do Professor Clarus. Havia dois grandes grupos trabalhando neste hospital, o de ‘homeopatas puros’ e os ‘semi-homeopatas’, estes últimos usavam a Homeopatia associada à alopatia. Hahnemann ficou muito preocupado com a possibilidade de usarem tratamentos alopáticos no hospital homeopático, e irritou-se muito ao descobrir que foram feitas sangrias lá dentro em uma filha de um fervoroso adepto da Homeopatia. Ele fez publicar um artigo arrasador contra os ‘semi-homeopatas’ do hospital no mais importante jornal de Leipzig, acusando-os de desonrar a Homeopatia. A direção do hospital foi assumida então pelo Dr. Schweikert, um ‘homeopata puro’.

Em 1834 Hahnemann, então com 79 anos, decide visitar o hospital, e o faz em companhia do seu assistente, o Dr. Lehmann, e suas filhas. Ele gostou tanto do que viu, que decidiu assumir a direção do hospital, o que levou ao afastamento da associação dos médicos de Leipzig, que o geria. Hahnemann o dirigia a partir de Coethen, de forma muito ditatorial, mantendo sob suas ordens o Dr. Schweikert, que saiu para a entrada de outro homeopata, o Dr. Rummel, que não permaneceu muito tempo nesta função, entregando a responsabilidade a um jovem médico chamado Dr. Ficker, de quem pouco se conhecia. As dívidas acumularam-se, e o Dr. Ficker revelou-se um verdadeiro impostor que mais tarde admitiu que seu único propósito era demonstrar a inutilidade da Homeopatia. Tratava os pacientes pela alopatia e, aos doentes que exigiam remédios homeopáticos, dava açúcar puro. Durante sua gestão, escreveu numerosos artigos em revistas médicas, denegrindo a imagem da Homeopatia. Vários outros prepostos passaram pela direção do hospital, que fechou suas portas em 1842, após dez anos de existência tumultuada. Note-se que Hahnemann foi bastante indiferente aos rumos que o hospital seguia, estranho para quem sempre envolvia-se de forma muito apaixonada em tudo.

Em outubro de 1834, ainda com 79 anos, Hahnemann recebe para consulta uma mulher francesa de 30 anos, chamada Mélanie d’Hervilly, que estava deprimida pela morte de vários amigos e não achava cura em Paris. Decidiu consultar-se com o velho mestre após ler o Organon, recentemente traduzido para o francês. Realizou uma longa, desconfortável e perigosa viagem até Coethen, vestida de homem, talvez por razões de segurança. E é assim, vestida de homem, que chega a Coethen, escandalizando os seus habitantes.

Ela ficou hospedada na casa de um morador da cidade e consultava-se com Hahnemann todos os dias. As consultas são em francês, e tornam-se conversas sobre a medicina, que Mélanie sempre admirara. Após três meses, a francesa está curada e Hahnemann, apaixonado.

Suas duas filhas que com ele residem e seus amigos não nutrem o menor entusiasmo pelo que está acontecendo, mas não conseguem impedir que Hahnemann a peça em casamento, que é realizado em 18 de janeiro de 1835, em Coethen, na própria casa de Hahnemann, na presença das duas insatisfeitas filhas e dos amigos que se opunham a esta união. Ficaram morando nesta casa, e Carlota e Luísa mudaram-se para a casa ao lado, comprada por Hahnemann.

Luísa, a filha mais nova, escreveu-lhe uma carta numa tentativa inútil de demovê-lo da idéia do casamento incomum:

Pai muito amado, ouça-me.

Quando penso na minha abençoada mãe, nas suas qualidades, nas suas virtudes, parte-me o coração.

Viveu ao seu lado durante quase 48 anos, com uma fidelidade constante, educando consigo dez filhos, nas piores condições materiais, vagueando consigo pelo mundo, vítima das abomináveis perseguições dos inimigos da homeopatia.

Foi sempre alegre, voluntariamente sacrificando por si até a última moeda, mas estando sempre bem arrumada, elegante, dona de casa atenciosa, a fim de preservar sua tranqüilidade e a de seus filhos.

Ajudou-o de todas as maneiras e com todas as suas forças para permitir-lhe suportar penas e sofrimentos. Tratou-o quando esteve doente e assumiu os mais terríveis ataques com dignidade. Ensinou aos filhos o respeito que lhe é devido. Honra lhe seja feita! Com a nossa mais viva afeição por ela.”

Na véspera do casamento, Hahnemann foi a um cartório e fez um testamento transferindo seus bens e patrimônio para seus filhos e netos, resultando uma quantia muito boa para cada um deles.

Chegaram felicitações pelo casamento de vários países europeus. Alguns jornais da Saxônia publicaram notas irônicas sobre o fato, como esta: “O célebre pai da Homeopatia, Dr. Hahnemann, voltou a casar em 18 de janeiro, já entrado no seu octogésimo ano, para mostrar ao mundo o vigor que seu sistema lhe dá. O ‘jovem’ ainda está robusto e desafia portanto os médicos alopatas. Tente fazer o mesmo, se puder.”

Mélanie convenceu-o de que para assegurar a difusão mundial da Homeopatia, era preciso ir para Paris, “a cidade-luz”. Assim, seis meses após casarem-se, já com 80 anos, Hahnemann e sua nova esposa mudam-se para Paris. Carlota e Luísa ficaram sozinhas na velha casa de Coethen, tristes, pobres e magoadas, sentindo-se abandonadas pelo pai. Um mês antes da partida, Hahnemann volta ao cartório e redige um novo testamento, em que Mélanie é a herdeira universal, e seus filhos dividiriam seus móveis, arquivos médicos, livros e objetos. Carlota morrerá em 1862, e Luísa ficará ainda mais solitária, e receberá a visita de Constantino Hering em 1872, a quem se queixará com amargura desta situação que teve que viver.

Hahnemann e Mélanie instalam-se num pequeno apartamento no centro de Paris, onde vai morar também o tutor de Mélanie, e que ela já reservara antes de ir a Coethen, já prevendo o sucesso de sua empreitada. Algumas semanas mais tarde mudam-se para uma casa espaçosa próxima aos jardins do Luxemburgo, onde Hahnemann vai passear freqüentemente. A Homeopatia chegara à França há 5 anos, e já estava presente em várias cidades. A Sociedade Homeopática de Paris tinha como grande incentivador o Dr. Curie, avô de Pierre Curie, que viria a ser o descobridor do rádio juntamente com sua brilhante esposa Marie Curie. Dois jornais médicos dedicados à Homeopatia já circulam na França. Em agosto, Hahnemann obtém autorização para clinicar em Paris emitida pelo ministro da educação e saúde, o professor Guizot, e pelo rei Luis Felipe. Esta autorização havia sido solicitada em fevereiro, enquanto ainda moravam em Coethen, por Mélanie, sem que Hahnemann ainda pensasse em mudar-se para Paris.

Obviamente, os opositores da Homeopatia manifestaram-se, a partir da academia de medicina, pedindo o banimento da Homeopatia da França. O ministro Guizot respondeu num discurso na tribuna da câmara:

Hahnemann é um sábio de grande mérito. A ciência deve estar a serviço de todos. Se a Homeopatia é uma quimera ou um sistema sem valor próprio, cairá por si só. Se, pelo contrário, é um progresso, espalhar-se-á apesar de todas as nossas medidas de preservação, e é o que a Academia deve desejar, antes de qualquer outra pessoa, jé que é sua missão fazer avançar a ciência e encorajar as descobertas.”

Cabe ressaltar o fato de que Guizot também era maçom, e isto provavelmente pesou nas decisões favoráveis a Hahnemann. Mélanie também era muito bem relacionada na sociedade parisiense, o que abria muitas portas. E os médicos alemães estavam na moda na Paris de então.

Entre 1834 e 1837, começando em Coethen e depois prosseguindo em Paris, Hahnemann tratou do marquês d’Anglésea um dos heróis das guerras napoleônicas. Ele perdera uma perna na batalha de Waterloo e depois desenvolveu uma nevralgia facial que nenhum médico conseguia solucionar. O marquês ficou totalmente curado pelo tratamento de Hahnemann e esta cura foi considerada quase um milagre em toda a Europa, trazendo uma reputação muito grande para a Homeopatia e seu fundador. Outra cura espetacular foi a de um garoto escocês de 12 anos, que após dois anos de tratamentos alopáticos diversos, foi considerado incurável. Uma rica senhora o levou a Hahnemann, que curou-o após nove meses de tratamento homeopático.

Hahnemann foi convidado para fazer parte da Sociedade Galicana (destinada a defender a autonomia dos bispos franceses em relação ao Papa), e para esta ocasião redigiu um discurso que terminava com a frase: “A Homeopatia estará sempre em primeiro plano no meu combate…” Foi nomeado presidente honorário vitalício e recebeu uma medalha com sua efígie e dois bustos esculpidos a mando dos homeopatas parisienses, um em bronze e o outro em pedra.


Sua vida em Paris consiste de consultas, conversas com os colegas, homenagens e discussões científicas. Mudam-se para uma casa ainda maior, num bairro da moda em Paris. Mélanie o ajuda nas consultas, e ela mesma também dá consultas, mesmo ilegalmente. Os pacientes fazem fila à porta de seu consultório arrumado de forma austera e modesta, diferentemente do restante de seu palacete. Ele atende nobres, burgueses, artistas, políticos, jornalistas. Hahnemann desfruta de uma celebridade nunca antes imaginada. Os honorários eram fixados de acordo com a situação financeira de cada um: os pobres não pagavam nada e os ricos pagavam bem.

Hahnemann e Mélanie atendiam até as seis horas, e depois jantavam juntos. Às segundas-feiras à noite recebia os médicos homeopatas para discutirem Homeopatia, às quintas ia à ópera ou ao teatro com sua jovem esposa. Uma vez por mês recebiam a sociedade parisiense em sua casa.

Em 1837, com 82 anos, sofre um novo baque, ao receber a notícia de que sua nona filha, Eleonora, havia sido assassinada em Coethen. Havia a dúvida se fôra assassinato ou suicídio, pois um homem que estivera com ela horas antes do suicídio era um tabelião que foi chamado para redigir um testamento.

Em 1839, aos 84 anos, Hahnemann é homenageado pelo sexagésimo aniversário de sua tese de formatura em medicina. Sua filha Amália vai a Paris prestigiá-lo e tentar obter uma ajuda em dinheiro para ela e suas duas irmãs que ficaram em Coethen. Nesta ocasião, um jovem médico vindo de Lyon, Bento Mure, declamou um longo poema que escrevera para Hahnemann. Mure depois viria para o Brasil, introduzindo a Homeopatia em nossa terra. Aliás, Hahnemann interessa-se muito pelo desenvolvimento da Homeopatia em terras estrangeiras, como o Brasil, os Estados Unidos e a Inglaterra, interesse este comprovado na correspondência que troca com os médicos homeopatas destes locais.

Em 1840, aos 85 anos, Hahnemann empenha-se em preparar uma nova edição para o Organon, aproveitando seus horários vagos nesta tarefa. Em 1842, aos 87 anos, ele anuncia a um editor de Dusseldörf que a sexta edição está pronta. Esta sexta edição, contudo, só será publicada no século seguinte após muitas aventuras.

Em 1841, aos 86 anos, Hahnemann recebe o título de ‘cidadão honorário’ de Meissen, sua cidade natal, que lhe é entregue pelo embaixador da Saxônia em Paris. Hahnemann decide diminuir o ritmo de suas atividades médicas, deixando Mélanie substituí-lo cada vez mais nas consultas.

Ele deseja que, após a sua morte, Mélanie possa continuar clinicando como homeopata. Assim, em 1841, pede a Constantino Hering, que fundara um instituto que formava médicos homeopatas nos Estados Unidos, um desses diplomas para ela, mas não obteve qualquer resposta. No ano seguinte, o mesmo se deu, e só em 1843, decide atender ao pedido. Em agradecimento, Hahnemann envia um molde em gesso de seu busto para o instituto, mas o navio naufragou e tudo foi perdido.

Continua a escrever e fazer experiências e o último trabalho que escreve é o estudo de Arsenicum album que integra ao Tratado das Doenças Crônicas.

Em 1842, Hahnemann, aos 87 anos, recebe novamente o Dr. Frederico Quin para estudar Homeopatia por um ano, ao fim do qual voltou a Londres para inaugurar dois anos depois a Sociedade Homeopática Britânica e, em 1849, o Hospital Homeopático de Londres. Graças às relações com a nobreza que o Dr. Quin mantinha, a Homeopatia passou a ser a forma de tratamento preferida pela corte da Inglaterra, o que persiste ainda hoje.

Em 1843, aos 88 anos, Hahnemann sofre mais intensamente com problemas pulmonares, alimentados pelo seu tabagismo. Como todos os médicos, ele automedica-se. Depois, recorre a um de seus mais fiéis alunos, o Dr. Chatman. Mélanie o mantém isolado, provocando boatos de que já estaria morto. Suas filhas são avisadas em Coethen, e Amália volta a Paris, acompanhada de seu filho de dezessete anos de idade, Leopoldo Suss, futuro médico homeopata. Mélanie não deixa que eles vejam Hahnemann, só liberando sua entrada nos aposentos algumas horas antes de sua morte, porém este já não reconhece a filha e o neto. Percebendo que sua morte era inevitável, ele manifesta a Mélanie o desejo de que em sua sepultura seja inscrita a expressão ‘Non inutilis vixi’ (não vivi em vão), mas ela não o cumpriu. Ela disse-lhe, tentando confortá-lo, que por ter aliviado e curado tantas pessoas e ter passado por tantas dificuldades na vida, a Divina Providência cuidaria para que ele não sofresse mais. Ele respondeu imediatamente: “Para mim, por que para mim? Cada um neste mundo trabalha de acordo com os dons e possibilidades que recebeu da Divina Providência. Deus não me deve nada. Eu devo muito a Deus.” Morre às cinco horas da manhã, no dia 2 de julho, nos braços de Mélanie.

 

No dia seguinte, o falecimento é anunciado na câmara do distrito pelos Drs Jahr e Croserio. Seu corpo é embalsamado e fica em casa por alguns dias, onde familiares e discípulos vêem prestar uma última homenagem. Mélanie recebe permissão da polícia para manter o corpo de seu marido em casa por alguns dias. Na manhã de 11 de julho de 1843, seu corpo é transportado para o cemitério de Montmartre, numa cerimônia simples, sem flores, sem coroas, sem discursos, sem bênçãos, na presença apenas de Mélanie, Amália, Leopoldo e um jovem farmacêutico, sobrinho do tutor de Mélanie.

É de notar-se que Hahnemann ficou célebre como o pai da Homeopatia, ofuscando diversas outras facetas importantes da reforma médica que ele propunha e que frutificaram, como o tratamento psiquiátrico humanizado, a necessidade da medicina basear-se na experiência, a importância da química, e o valor de uma dieta balanceada, exercícios físicos, ar puro, instalações sanitárias, descanso adequado e alegria para  a saúde. Muito da moderna medicina, mesmo a alopática, deve-se a estas noções que Hahnemann introduziu, e a história não lhe creditou.

Os jornais pouco noticiaram sobre seu funeral, mas destaca-se uma nota no Jornal dos Debates:

Não seguiremos Hahnemann nas diversas fases de sua longa carreira, mas qualquer que seja a opinião que se tem de suas doutrinas, não podemos deixar de reconhecer que ele ostentou na perseguição de sua idéia uma perseverança inabalável, sustentada por uma convicção forte e profunda, unida ao coração mais verdadeiro, à alma mais dedicada.”

 

Marcelo Guerra Ferreira de Souza, Médico Homeopata.

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