A saga de Hércules, que foi imortalizado ao realizar com sucesso 12 árduas tarefas, é uma das passagens mais conhecidas da mitologia da antiga Grécia. O herói enfrentou a ira dos deuses e lutou contra seres horríveis para transcender sua condição de simples mortal. “Hércules não aceitava a imperfeição de sua condição humana e saiu em busca de algo maior, transcendental, assim como muitos de nós fazemos hoje. À primeira vista, o mito parece apenas um relato fantástico, mas por meio dele podemos descobrir formas de superar desafios”, acredita o professor Efraim Rojas Boccalandro, coordenador do curso de mitologia grega da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“O mito de Hércules ensina que nós também podemos vencer nossos defeitos e nos tornar pessoas melhores, mais éticas e dignas. Esse caminho exige esforço, persistência e coragem, principalmente para encarar monstros internos, como a agressividade, o egoísmo e a falta de respeito ao próximo”, interpreta Viktor Salis, grego radicado em São Paulo, especialista em mitologia grega e autor do livro Os Doze Trabalhos de Hércules para o Caminho do Herói em Busca da Eternidade (edição do autor).
Superar obstáculos
O herói era filho de Zeus, deus supremo, e de uma mortal. Por isso, tornou-se alvo do ódio e das armadilhas da ciumenta Hera, esposa de Zeus, que não poupou esforços para destruir Hércules. Foi por causa dos estratagemas de Hera que o herói se viu obrigado a realizar os 12 trabalhos. E, embora tenha alcançado grandes vitórias, Hércules amargou também várias derrotas. “O que o distingue é sua maneira de encarar os desafios. Em vez de imobilizá-lo, os obstáculos funcionavam como alavanca, levando-o a se superar. É outra lição que podemos aprender”, afirma a paulista Ana Figueiredo, colaboradora da Fundação Joseph Campbell, instituição americana dedicada ao estudo dos mitos.
Apesar de Hércules ser retratado como um homem extremamente musculoso, muitas de suas vitórias foram fruto não de sua força, mas do uso da inteligência e da sabedoria.
Doze tarefas
Os desafios enfrentados por Hércules são metáforas das diversas fases do processo de desenvolvimento interior. Eles estão relacionados aos 12 deuses do Olimpo, o panteão divino dos gregos, e com os 12 signos do zodíaco, que representam forças cósmicas. Para o especialista em mitologia Viktor Salis, os trabalhos podem ser divididos em quatro etapas.
Os três primeiros tratam da violência, dos vícios e da criação de limites. O quarto, o quinto e o sexto estão relacionados com a descoberta dos talentos, com ritos de purificação física e mental e com a transformação do instinto em intuição. O sétimo, o oitavo e o nono trabalhos, por sua vez, falam da sexualidade e da arte de amar. Enquanto o décimo, o décimo primeiro e o décimo segundo são dedicados à criação, ao desapego e à conquista da espiritualidade.
Conheça a seguir as façanhas do herói:
1 O leão de Neméia: o aperfeiçoamento começa dentro de nós
O desafio de Hércules foi vencer um leão de pele invulnerável, que devastava rebanhos e devorava todos os que tentavam matá-lo. Aconselhado por Atena, deusa da sabedoria, a não usar a força, o herói estrangula a fera em sua caverna. “Nesse teste, Hércules ensina que a luta pelo aperfeiçoamento começa dentro de nós. Os leões de hoje são a violência e a agressividade e o desafio é buscar a harmonia, procurando antes de mais nada nossos recursos internos”, explica o mitólogo Viktor Salis.
2 A hidra de Lerna: combate aos vícios
Hércules teve de destruir um monstro de nove cabeças que soltavam fogo: oito renasciam quando cortadas e a nona era imortal. O herói decepou as oito cabeças enquanto um amigo as cauterizava com fogo. A nona foi enterrada, mas vigiada eternamente por Hércules. “As cabeças simbolizam os vícios. Lutamos contra eles, mas, como são imortais, se não estivermos atentos, renascem. Além dos vícios físicos, como drogas e álcool, temos de combater os vícios éticos, como a ganância”, acredita Salis.
3 O javali de Erimanto: vencer o egoísmo
Foram necessários dois anos para Hércules capturar um javali feroz que devastava tudo por onde passava. Esse trabalho está relacionado ao aprendizado da vida em sociedade, segundo Salis. “O javali é um monstro sem fronteiras, que não respeita limites. Cada um de nós tem dentro de si essa fera, que é preciso dominar, aprendendo a reconhecer nosso espaço e o das outras pessoas. É um teste para vencer o egoísmo e a tendência a achar que o mundo gira em torno do próprio umbigo”, interpreta o especialista.
4 A corça cerinita: cultivar a delicadeza
A missão de Hércules era capturar viva uma corça extremamente veloz, com chifres de ouro e cascos de bronze, que pertencia a Ártemis, deusa da caça. Orientado por Atena, o herói dominou o animal sagrado segurando-o pelos chifres. “Os chifres representam a iluminação, e os cascos de bronze, o mundo material. O aprendizado nesse trabalho é substituir os impulsos por qualidades mais nobres, como sabedoria, delicadeza e paciência”, explica Efraim Rojas Boccalandro.
5 Os estábulos de Áugias: purificação do sentimentos
Hércules se ofereceu para limpar em um só dia os currais imundos de um rei que possuía um rebanho numeroso. Desviando dois rios para os estábulos, Hércules cumpriu a promessa, que parecia impossível. Segundo Viktor Salis, nossa sujeira acumulada é composta por raiva, angústia e emoções negativas. “Para fazer uma limpeza interior, devemos observar diariamente e com honestidade a qualidade de nossas reações e emoções”, recomenda.
6 Os pássaros do lago Estínfalo: recuperar a lucidez
Para derrotar aves antropófagas que tinham penas de bronze e as lançavam como flechas, Hércules atordoou-as com o som ensurdecedor de um címbalo. “O teste de Hércules é igual ao de qualquer um de nós: conseguir reconhecer e usar a intuição. Os pássaros simbolizam a falta de lucidez e o som é nossa voz interior. O trabalho em excesso, a pressa e o estresse são pássaros que nos atordoam. O antídoto para essa situação é nos aquietarmos para ouvir o que verdadeiramente queremos fazer”, acredita Viktor Salis.
7 O touro de Creta: governar os instintos
Nesse trabalho, Hércules domou o furioso touro de Creta, ao qual eram oferecidos jovens em sacrifício. Essa tarefa chama a atenção para o controle dos instintos, especialmente da sexualidade. “Hércules precisava manter o animal vivo: tinha que domar e governar seu instinto, mas não matá-lo. Em um mundo com tantos apelos eróticos e sensuais, esse é um desafio para todos, em especial para os jovens”, diz Salis.
8 As éguas de Diomedes: a arte de amar
Hércules teve de enfrentar quatro éguas que se alimentavam de náufragos estrangeiros. Como no trabalho anterior, esse é mais um passo para o herói se aperfeiçoar na arte de amar. “Essa é uma iniciação: aprender a entregar o coração com sinceridade, não se deixar levar pela tentação, movido apenas pela atração física”, afirma Viktor Salis.
9 O cinturão de Hipólita: a coragem de ser autêntico
A missão do herói era conseguir o cinturão da rainha das amazonas, mulheres conhecidas por sua bravura. Mas não poderia obtê-lo pela força: precisaria ganhá-lo conquistando o coração da guerreira. “Esse trabalho fala sobre a importância de construirmos laços afetivos duradouros”, diz Viktor Salis. “Ensina que a arte de conquistar uma pessoa não se faz pela força nem criando ilusões e falsas aparências, mas pelo respeito ao outro e pela coragem de mostrar quem verdadeiramente somos.”
1O Os bois de Gerião: a lição do desapego
Hércules empreendeu uma grande viagem para derrotar o rei Gerião e se apoderar de seus bois. Enfrentou também o gigante Anteu, invencível porque, cada vez que tocava a terra, recobrava as forças. Para derrotá-lo, ergueu-o no ar. “Essa é uma lição de desapego, sobre derrotar a cobiça e o materialismo. Gerião e os bois simbolizam as posses. A verdadeira riqueza, que é eterna, está dentro de nós. São nossos sentimentos e valores”, explica Salis.
11 Os pomos de ouro do jardim das Hespérides: descoberta de talentos
O herói teve que superar vários percalços para obter os frutos de ouro de uma árvore maravilhosa, que representam a força fecunda e criadora dos homens, protegidos por um dragão imortal. “Assim como Hércules teve que ir aos extremos do mundo para descobrir esses frutos, nós também precisamos fazer uma viagem a nosso mundo interior para descobrir nossos talentos e potenciais, que são os pomos de ouro”, diz Salis.
12 A captura de Cérbero: valorizar as qualidades da alma
O desafio era descer ao inferno para vencer Cérbero, cão de três cabeças que guardava o Mundo Inferior. O herói agarrou o animal pelo pescoço e não o soltou até que concordasse em acompanhá-lo. “Esse trabalho fala da imortalidade. Ensina que o corpo pode perder o viço, mas a alma deve irradiar cada vez mais a beleza construída ao longo dos anos. É um ensinamento importante para estes tempos, em que o envelhecimento e as transformações do corpo não são aceitas com naturalidade”, conclui Salis.