Eu era menino e vivia numa casa no Boaçu. Provavelmente você nunca ouviu falar em Boaçu, se você não mora em São Gonçalo. O Boaçu era um bairro pobre de uma cidade pobre. Ambos, o bairro e a cidade, cultivavam a esperança de prosperidade no futuro. Nem sempre o futuro chega…
A casa nasceu de um apêndice da casa da minha avó. Eu digo “casa da minha avó”, mas o meu avô era vivo e também morava lá, mas a minha avó materna era como uma guardiã nossa, minha e da minha irmã. Era uma casa de uma sala e 3 quartos, uma cozinha e um banheiro, um quintal cimentado no fundo, um pedaço cimentado na frente e um pequeno jardim com algumas roseiras e uma árvore de Natal, aquela que não pode crescer além do telhado da casa, sob pena de morte do dono da casa. A casa não tinha nenhum documento regularizado, portanto não havia oficialmente um dono que pudesse ser punido pela maldição da árvore de Natal.
Tudo isso para dizer que no quintal dos fundos tinha uma goiabeira, cujas raízes se escondiam sob o cimentado, sufocadas. É claro que a minha lembrança sentimental me fará dizer que eram as melhores goiabas que eu experimentei, que nunca mais comi tão saborosas, que essas que encontro no hortifrúti, no supermercado ou na feira nem chegam aos pés. Mas a época de goiaba é curta, e coincidia com as férias da escola. Eu gostava muito de escalar os galhos da goiabeira, embora não lembre a partir de qual idade passei a ir aos galhos mais altos. Lá eu alcançava as melhores e maiores goiabas. De lá, eu via o terreno baldio vizinho à minha casa, por cima do muro, a casa de Seu Lourival, o outro terreno baldio do outro lado da rua onde ficava o barracão de Maria do Camburão, e o ponto de ônibus de quem chega ao Boaçu. O de quem sai ficava fora do alcance da minha vista. Via o teto da minha casa e da minha avó. Quando lembro disso, me pergunto onde foi parar minha ousadia.
A goiabeira era o meu refúgio. Diferente do menino que era amigo do pé de laranja lima, nunca conversei com a goiabeira. Ela também nunca puxou assunto. O que mais me atraía nela era o silêncio, a paz. O clima lá em casa era sempre meio pesado, e às vezes bem pesado. Provavelmente eu já não era nenhum santo, e tomava broncas por ter feito alguma coisa, deixado de fazer alguma outra ou implicado com a minha irmã. Algumas vezes não eram só broncas, mas palmadas ou chineladas.
Meus pais não me deixavam brincar na rua, e eu ficava brincando em casa com umas pecinhas de plástico para montar qualquer coisa, brincava com a minha irmã, geralmente de casinha, e ela geralmente já não queria mais brincar quando era a hora de eu escolher a brincadeira, e não adiantava eu reclamar porque ela “é pequena”. Brincava também sozinho, com meu revólver de estalinho, geralmente sem estalinho nenhum, já que eu disparava todos de uma vez só no dia que os ganhava. Com o revólver eu representava o que eu via na TV, ora polícia, ora ladrão, ora Batman, ora Starsky e Hutch (era os dois ao mesmo tempo, sim, por que não?), ora Capitão Kirk. Sim, o revólver funcionava como um phaser também! Era meu, eu que estava brincando, era o que eu quisesse que fosse.
No alto da goiabeira eu ficava comigo mesmo, esqueciam de mim, e podia ficar observando as pessoas passando pela rua, ou as que desciam do ônibus. Gostava de ver os vizinhos jogando bola no terreno ao lado de casa, e sonhava com o dia que eu poderia ir lá também. Eles xingavam e meu pai reclamava com eles, dizendo que tinha criança em casa. Às vezes alguma formiga ou inseto qualquer me incomodava um pouco lá em cima, mas nada que um peteleco no importunador não resolvesse.
Eu sentava a cavaleiro em alguma junção dos galhos e isso era minha segurança. Outra medida de segurança era tirar os chinelos havaianas antes de subir para não escorregar. O problema de deixar os chinelos lá embaixo era que eles funcionavam como uma baita pista de onde eu estava, assim que algumas vezes eu colocava os chinelos pelas tiras somente nos meus antebraços e subia com eles. O grande objetivo de trepar na goiabeira era ficar meio que invisível. Eu podia observar as pessoas e as casas sem que ninguém me notasse, um exercício de voyeurismo assexuado. O que me atraía era a liberdade das pessoas que podiam andar sozinhas na rua, chegar de ônibus sozinhas, ficar em pé no portão conversando, jogar bola quando quisesse. Eu via aquelas pessoas passando e imaginava onde elas iam, o que iam fazer, sobre o que conversavam. Acho difícil que eu tenha acertado alguma suposição, pois até hoje considero muito difícil saber o que os outros pensam ou suas motivações. Sou péssimo adivinho! Essa minha deficiência divinatória me trouxe dificuldades nos meus relacionamentos, porque me parece um esporte muito popular entre as mulheres querer que o parceiro adivinhe o que está pensando ou querendo.
Nem sempre eu era o espião do Boaçu, observando os passantes de meu posto de observação. Muitas vezes eu somente desfrutava do silêncio da goiabeira. Agora poderia dizer que eu meditava. Eu me entregava à goiabeira, conhecia cada folha sua, cada broto, cada goiabinha em diferentes estágios de maturação, cada flor da goiabeira, seu caule, que é marrom, mas ele é malhado, meio verde também. Tinha caules novos, que terminavam com um buquê de folhas e que, na semana seguinte, já estavam separadas, uma turma de folhas para cada lado. Ela me abduzia para o seu ritmo, sua vida e, por alguns momentos, eu esquecia um pouco dos meus pensamentos e tristezas. Pois é, criança também pensa, também fica triste. Nem sempre eu era triste, geralmente estava alegre.
Hoje tenho uma goiabeira na minha casa, ela está florindo, mas nunca consigo comer goiaba nenhuma dela, porque elas ficam cheias de bichos, e não aprecio essa concorrência desleal. Porém, eu a vejo da minha janela e fico me perguntando onde está aquele menino que deitava nos galhos mais altos da velha goiabeira com coragem e entrega. Achava que os anos me trariam mais coragem, mas parece que a cada aniversário fui ganhando pesadas âncoras que me impedem de trepar na goiabeira e buscar a liberdade que eu encontrava lá no alto.