Marcelo Guerra é um médico homeopata que atende no centro de Nova Friburgo, em Lumiar e em Cantagalo. Escreve para o site Personare e organiza, também, “vivências de terapia biográfica em grupo”, em Nova Friburgo e em São Paulo. Nestas últimas, procura levar o grupo a compartilhar fatos das vidas dos componentes do grupo, buscando “um fio de sentido” que conecte esses fatos, procurando levar os participantes à consciência desse sentido para poder ajustar suas vidas a seus sentidos
Marcelo deu entrevista para A VOZ DA SERRA, no sábado, 6 de outubro, em Lumiar, falando de suas experiências e de sua visão de mundo e da medicina.
A VOZ DA SERRA – Fale um pouco de sua trajetória de vida.
Marcelo Guerra – Nasci em São Gonçalo (RJ) e vivi lá até os 22 anos. Estudei medicina na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), na Ilha do Fundão. Antes, estudei em São Gonçalo na Escola [Municipal Presidente] Castelo Branco e depois em Niterói, no [Instituto] Gay Lussac. Uma história curiosa dessa escola em que estudei: quando era pequeno, passava ao local onde depois foi construída essa escola e não tinha obra, não tinha nada, era uma chácara. E eu dizia para minha avó que ia estudar ali. Explicavam-me que não estudaria ali, porque era uma casa, onde moravam pessoas. Depois, demoliram e fizeram essa escola. E fui estudar lá. Quando fui estudar no Fundão, era uma hora e meia para lá e uma hora e meia para cá … Isto quando não tinha engarrafamento, quando não quebrava o ônibus da CTC (Companhia de Transportes Coletivos do Estado do Rio de Janeiro). Depois, vim para o interior [do estado].
AVS – Por que esta sua escolha de mudar-se para o interior?
Marcelo Guerra – Tinha um tio-avô que havia comprado um sítio em Monnerat [distrito de Duas Barras]. Esse tio-avô e minha avó são de Euclidelândia, em Cantagalo. Foram criados em Macuco e mudaram-se para Niterói—ainda adolescentes. E ficaram com aquela visão idílica dessa Região Centro-Norte. E aí, esse tio comprou o sítio e, quando eu tinha 12 anos, me convidava para passar fins de semana e férias. E eu adorei Monnerat … Vinha a Friburgo, que achava linda—acho ainda. Depois, meu tio loteou o sítio para os parentes com prestações a perder de vista. E minha mãe comprou um lote e fez uma casa. E vínhamos nos fins de semana e nas férias. Assim, já tinha contato com as pessoas de Monnerat e gostava muito, meu sonho era morar em Monnerat, trabalhar lá. Quando pude fui para lá. Minha então esposa, que trabalhava no Banco do Brasil, transferiu-se para Cordeiro, montei um consultório em Monnerat, arranjei emprego no hospital de Bom Jardim, depois na Prefeitura de Duas Barras.
AVS – O consultório já era de medicina homeopática?
Marcelo Guerra – Não, era de pediatria. Depois fui trabalhar em Cantagalo, que foi o lugar em que tive mais clientes. Nessa época, fui fazer o curso de homeopatia, no Rio, no Instituto Hahnemanniano Brasileiro (IHB). E continuei a trabalhar em Cantagalo e nos outros hospitais, em Valão do Barro, em São Sebastião do Alto, em Macuco, em Cambuci.
AVS – Sua vida profissional foi, então, sempre no interior?
Marcelo Guerra – Sempre no interior. Hoje, quando converso com colegas, ou com minha filha que estuda medicina, vejo como é diferente a forma como a medicina é exercida no interior e na cidade grande. Agora, voltei a atender em Cantagalo. Quando chego lá e encontro as pessoas, é como se fosse um reencontro de amigos. Isso não existe mais na cidade grande.
AVS – Falando em cultura do interior, há um grande diferença entre o interior de São Paulo e do estado do Rio. Em São Paulo, o interior é muito vivo, rico, e o estado do Rio parece ter sido meio esquecido, mas agora parece estar se revitalizando …
Marcelo Guerra – Não sei … Cantagalo, por exemplo, é muito arrumadinho, muito bonito, mas sinto que os jovens que se formam não têm como trabalhar, precisam sair. Aqui em Friburgo, também. Acho que isso reflete a decadência econômica do estado todo.
AVS – Você era pediatra e de onde veio essa inclinação pela homeopatia?
Marcelo Guerra – Minha relação inicial com a homeopatia era de repúdio. Estudei no Fundão e lá a homeopatia é vista como não sendo medicina. Mas, um dia, tive contato com um professor que estava levando um filho ao médico homeopata. E ele me contou que o filho tinha asma, que nunca melhorava, tinha crises uma atrás da outra, e melhorou com a homeopatia, não teve mais crises. E ele me disse: “Não sei como é, mas funciona”. E então fui assistir a uma palestra [sobre homeopatia] e gostei. Aí me inscrevi no curso—ainda meio desconfiado. Isso foi em 1990. Fui ver qual era e acabei fazendo o curso todo e descobrindo ali o meu graal.
AVS – O santo graal?
Marcelo Guerra – Tinha acabado de ler a história do Parsifal e ele, quando entra no castelo onde está o graal, vê o graal, mas não sabe o que é. Depois ele fica sabendo e tenta de novo chegar lá.
AVS – Mas por que foi o seu graal?
Marcelo Guerra – Porque estudei homeopatia mas, apesar de ter logo sucesso com os clientes, os tratamentos dando certo, ficava sempre assim como se não fosse bem aquilo. Depois fui fazer acupuntura, depois terapia biográfica …
AVS – E a psicanálise?
Marcelo Guerra – A psicanálise aconteceu em Niterói. Ainda durante a faculdade fiz dois anos de [formação em] psicanálise lacaniana, na Escola de Psicanálise de Niterói. Mas era como se eu estivesse sempre procurando uma outra coisa que complementasse, achando que faltava alguma coisa. Mas, no fim das contas, vi que meu graal era a homeopatia. Ali é que estava o que eu precisava, o que eu buscava, a visão de pessoa, a visão de como lidar com a doença, de como lidar com o paciente, estava tudo ali. As outras [tendências de pensamento] falam coisas muito semelhantes, apesar de teoricamente serem muito diferentes.
AVS – Há quem entenda o sucesso da homeopatia em parte como efeito psicossomático, isto é, como algo que tem efeito sobre o corpo a partir de uma situação psíquica, relacionado com algo como uma crença, ou uma crença compartilhada por um grupo social que, assim, interfere na realidade corporal. Como você vê isso?
Marcelo Guerra – Pois é, mas há situações de pacientes que não acreditam na homeopatia. E há também o paciente que diz o seguinte: “Ah! Me dou muito bem com a homeopatia porque acredito”. Eu discordo, porque não é isso, não é questão de acreditar. É a questão, por exemplo, da homeopatia veterinária: o cachorro não acredita em nada, o passarinho não acredita em nada. Uma planta: agora usa-se homeopatia na agricultura. Como seria possível uma planta melhorar de uma doença com a homeopatia? Não é por fé. Não é preciso acreditar, é só tomar o remédio.
Tive um paciente, uma vez, um senhor, que chegou irado—isto foi lá em Cambuci—, ele chegou brigando, falou um monte de palavrões e disse: “Só vim porque minha filha marcou, me obrigou a vir!”. Como ele disse tudo isso antes da consulta, pensei que nem adiantaria levá-la adiante, imaginando que ele não fosse tomar o remédio. Perguntei então a ele: “Antes de perdermos tempo, se eu passar algum remédio o senhor vai tomar?”. Respondeu-me que tomaria porque a filha é que pagaria. Aí, conversei com ele, perguntei tudo, anotei e prescrevi. Funcionou e o cara ficou meu fã. Depois, me mandou um monte de pacientes. Se dependesse de acreditar, com aquele ali nada daria certo, não tinha a menor chance.
Agora, como funciona? Existem algumas teorias mas não me aventuro [a discuti-las]. Honestamente, funcionando, não me interessa saber como funciona. Não que não seja importante saber como funciona, é importante, mas este não é o meu trabalho, mas dos cientistas. Há um estudioso, Jacques Benveniste, Prêmio Nobel de medicina, que descobriu o vírus da aids. Ele é um médico francês que hoje pesquisa como funciona a homeopatia, como funcionam esses remédios tão diluídos. Ele trabalha com isso, eu, não. Trabalho com o paciente.
AVS – Aqui você traz a seguinte questão: a medicina, embora se baseie em conhecimentos científicos, também é uma arte, também depende da intuição e de percepções não necessariamente racionalizadas. O que você pensa disto?
Marcelo Guerra – Exatamente, o [Christian Friedrich Samuel] Hahnemann [1755-1843], quando escreveu o livro que é uma espécie de Bíblia da homeopatia [em 1810], deu-lhe o nome de Organon da Arte de Curar, não da ciência de curar. Se você vai fazer uma pintura você tem que aprender a técnica, não é simplesmente a intuição ou a sensibilidade. Fora as pessoas excepcionais, que têm um dom especial, é preciso ter uma técnica, aprender esta técnica, e colocar sua sensibilidade junto. Medicina é uma arte. Tem-se hoje a ideia de medicina baseada em evidências, que, na realidade tem sido medicina baseada em exames e muitas vezes o médico nem olha a cara do paciente, só sabe do resultado do exame. Se no exame apresentam-se tantos leucócitos ou tantos não sei o quê, não interessa nem se o paciente está bem ou não. Às vezes está bem [apesar de o exame sugerir o contrário]. Às vezes é uma situação que até já acabou. Hoje em dia há uma enxurrada de exames e as pessoas nem conversam.
AVS – Isto faz lembrar o Nelson Rodrigues quando falava em “idiotas da objetividade”: esse saber muito objetivo ajuda, é claro, mas o estado do paciente o médico pode perceber com aquelas práticas antigas, com a observação imediata da pessoa …
MG – … e aí, o exame complementar voltaria a ser realmente complementar. Hoje, na medicina convencional, acho que é o principal.
AVS – Mas isto está mudando, não é?
Marcelo Guerra – Está porque as pessoas estão querendo, estão precisando ser atendidas e não só examinadas, não só fazer exames complementares. As pessoas estão querendo ter um atendimento de verdade.
AVS – São quase que duas profissões diferentes, embora complementares: a medicina praticada com a percepção clínica do médico, com o chamado “olho clínico”, e a medicina, digamos, teórica.
Marcelo Guerra – E o teórico, o pesquisador, traz o recurso da técnica que permite fazer com segurança o trabalho junto com o paciente.
AVS – Outra questão interessante é a das regularidades necessárias à vida humana. Precisamos de uma regularidade de sono e vigília—inclusive, diferente de outros animais—, assim como precisamos comer ou beber periodicamente. Não podemos nos livrar dessas regularidades, não é?
Marcelo Guerra – A esse respeito, pode-se pensar na rotina. A gente reclama tanto da rotina, mas ela é necessária. Ela vem dos hábitos e, estes, trazemos muito de nossa infância, do modo como fomos criados. Por exemplo: você está fazendo uma longa viagem de carro e para às 11h. Aí, come um sanduíche e continua a viagem. Mas você tem o hábito, desde criança, de almoçar ao meio-dia. Você comeu e não está com fome, mas, ao meio-dia, você sente que está faltando alguma coisa. A gente vive reclamando dos hábitos e das rotinas, mas mudá-los é muito difícil. E viver totalmente sem rotina é praticamente impossível. Seria muito cansativo e insuportável e não ter uma rotina acaba virando uma rotina. As regularidades são necessárias, fazem parte da vida da gente. Mas não se pode ficar escravo dos hábitos. Nesse exemplo da viagem, a pessoa não pode deixar para comer só ao meio-dia porque, às vezes, não haverá nada na estrada para se comer a essa hora.
AVS – É difícil distinguir o que é propriamente uma necessidade do corpo do que é criado pela mente, não é?
Marcelo Guerra – Há quem procure separar o que é do corpo e o que é da mente, mas, na realidade, tudo é uma coisa só. Tanto a homeopatia, quanto a medicina chinesa pensam assim.
AVS – E quanto à terapia biográfica?
Marcelo Guerra – Ela vem muito em cima da pessoa tomar [o controle da própria vida]. Existe o livro da doutora Gudrun Burkhard, cujo título é “Tomar a vida nas próprias mãos”. Apesar do nome alemão, ela é brasileira [de São Paulo] e atualmente mora em Florianópolis. Muitas vezes a pessoa atribui seus problemas a outro, ou às circunstâncias, à família. Também acontece da pessoa ter necessidades que não foram satisfeitas, mas ela não vai voltar lá atrás para refazer as coisas. Pode-se buscar entender qual o sentido disso e o que se pode fazer daqui pra frente.
AVS – Qual a diferença entre essa perspectiva e a psicanalítica?
Marcelo Guerra – É que a psicanálise trabalha muito com o conceito do inconsciente. Na terapia biográfica há a influência da antroposofia, criada por Rudolf Steiner [1861-1925], e tem também a influência do Viktor Frankl [1905-1997], que foi psicanalista. Ele era judeu e austríaco, como Freud. Ele não acreditou muito que viesse a acontecer a perseguição aos judeus. E aí, foi preso e passou seis anos no campo de concentração de Auschwitz. Ele criou uma nova linha de terapia, a logoterapia, baseada no sentido. Ele pensa o seguinte: os prisioneiros não eram sempre mandados imediatamente para a câmara de gás, eram postos para trabalhar. E ele se pergunta por que algumas pessoas morriam nos campos de concentração de doenças, de fome, de frio? Por que uns morriam e outros, não? Ele se perguntava o seguinte: “O que faz a gente sobreviver?”. A pessoa perdeu tudo, a família, o nome, profissão, casa, todos os seus bens. Por que alguns sobreviveram mesmo assim? A partir dessa questão ele escreveu um livro clássico, “O homem em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração”. Ele diz que ter um sentido para a própria vida faz com que a pessoa permaneça viva, dá uma força para sobreviver.
AVS – Mas existem circunstâncias, como essa do campo de concentração, em que a vida se altera tanto, que a pessoa precisa encontrar outro sentido…
Marcelo Guerra – Será? O importante é a pessoa olhar sua vida e perceber um sentido, que não tem que ser imutável. Não é uma ideia de um destino pesado sobre a pessoa, pois, se fosse assim, não seria tomar a vida em suas mãos. Quando se tem a percepção de um sentido em sua história de vida, consegue-se diminuir a insatisfação.