Uma tarde com James Hillman
por John Söderlund
Esta entrevista foi traduzida mediante autorização de seu autor. O original em inglês pode ser acessado em newtherapist.com/hillman8.html.
“Não, 90 por cento do tempo eu não permito que as pessoas me fotografem,” responde James Hillman bruscamente.
“Será que isto poderia ser parte dos 10 por cento,” eu me arrisco, dando um sorriso na direção do homem de aparência comum sentado na ponta de sua cadeira atrás da mesa, posicionada no centro do palco.
“Não, definitivamente não,” ele responde, bufando e desviando o olhar antes que o meu sorriso pudesse intervir para suavizar a pancada.
Eu me viro rapidamente, constrangido e furioso pela sensação de ter tomado um fora brutal, e sumo no meio dos dois mil ou mais membros da platéia que esperavam ansiosamente pelo discurso de Hillman.
Este é o piece de resistance no menu junguiano da Conferência Evolution of Psychotherapy de 2000, uma reunião de gurus da psicoterapia e alguns milhares de clientes bajuladores que vão beber até a última gota das palavras de seus “mestres”.
“Quem ele pensa que é,” eu resmungo para mim mesmo silenciosamente enquanto me sento no fundo do auditório e espero sua fala.
“A psicologia junguiana diz respeito, acima de tudo, à atitude,” ele começa. “Logo, o trabalho todo está em compreender esta atitude em direção à psique, ou à alma. A questão é: ‘O que é que a psique está fazendo ao apresentar o paciente com uma depressão?’”
Este é o Hillman clássico, brincando com o controverso e escorregadio tema da alma, com o qual mereceu um pouco de atenção recente no seu livro O Código do Ser. Escute relaxadamente e é atraente e empolgante. Preste muita atenção e ele apresenta mais buracos do que um queijo suíço, eu penso, ainda ferido.
“Ao invés de ver a depressão como uma disfunção, ela é um fenômeno funcional. Paralisa-te, acalma-te, deixa-te terrivelmente infeliz. Então você sabe que ela funciona,” explica Hillman, falando devagar e deliberadamente o bastante para um texto escrito à mão, transcrito palavra por palavra.
Você está fazendo uma ligação causal entre a epidemia da depressão no final do século XX e o estilo de vida que adotamos nas nações industriais do primeiro mundo, eu penso junto com algumas outras centenas de terapeutas extasiados?
“Se a história é meramente a repetição de uma estória, então não é necessariamente causal. Na visão de Jung, a causalidade é algo mais formal,” ele contra-ataca intuitivamente, desviando-se de um entendimento claro de onde está indo.
A consciência é “unilateral” na psicologia de Jung. Esta visão unilateral que retemos do mundo é complicada com a chegada de “outras partes”, continua Hillman, “aquelas deixadas do lado de fora da sala principal, que entram pela porta dos fundos.
E o que entrou, passou despercebido pela consciência, não está lá com a intenção criminosa típica de quem entra pela porta dos fundos, mas veio para perturbar o programa unilateral que a consciência tinha a intenção de perseguir. Este intruso é um agente de mudança a serviço da busca de sentido que vai além do sentido que a consciência pode nos oferecer, eu penso, enquanto Hillman dá uma pausa, permitindo aos seus ouvintes posicionar as peças desconectadas do quebra-cabeça em seus lugares corretos sem nenhuma peça de conexão. Mas as partes que faltam são facilmente posicionadas por sua platéia atenta, absorvendo-as.
“Os fatos acima mencionados são a essência da atitude junguiana para o que vem à tona na sua vida e na de seus pacientes,” resume.
A epidemia da depressão
Os jornais nos dizem que há muito mais depressão à nossa volta do que imaginamos, que ela é endêmica em nossa cultura, a maior reclamação apresentada na prática médica, nos diz Hillman novamente, resumindo alguns anos de estatísticas e projeções de saúde mental superficiais.
“Temos que fazer alguma coisa sobre a depressão!” ele diz, imitando provocativamente a principal resposta psiquiátrica aos pacientes que apresentam sintomas de depressão.
É claro, eu penso, relembrando algumas projeções recentes que acreditam que a depressão irá defasar a força de trabalho nas próximas duas décadas.
Um dos principais critérios diagnósticos para a depressão, aponta Hillman, é se sentir deprimido a maior parte do dia, praticamente todos os dias, durante duas semanas pelo menos.
“È o mesmo que colocar uma doença crônica na categoria de uma doença [?] aguda. Temos que perceber a natureza maníaca daquele diagnóstico, de que qualquer coisa que dure mais do que duas semanas em nossa cultura é longo demais”, ele diz.
“Esta é uma situação totalmente maníaca. Eu tenho que falar continuamente com vocês para vocês não se entediarem,” ele grita para a platéia. “Eu fico em frente ao meu fax, dou-lhe umas pancadas e digo: ‘Por que demora tanto para estas malditas coisas passarem?’” Soltamos uma gargalhada enquanto duas outras peças do quebra-cabeça de Hillman se encaixam.
O que a maioria dos americanos reclama é de não ter tempo suficiente nem sono suficiente. Maníacos não precisam dormir nem comer. Podemos nos sentar durante o dia inteiro na frente do computador, despenteados, nus como um doente em uma ala isolada do hospital. Então, onde é que a depressão, a lentidão, se encaixam? Como é que Saturno entra, a não ser forçando sua entrada?
A economia da depressão
O custo direto da depressão responde por apenas uma pequena parte das despesas médicas médias de uma pessoa, ele continua, mas nossa oposição frenética à depressão e o que isto representa tem uma grande semelhança em nossos temores econômicos dominantes hoje em dia.
Falamos de uma depressão econômica. Nos preocupamos com a crise de energia em termos econômicos e com a inibição da vontade em nossos pacientes. Ponderamos sobre a ameaça da poluição mundial enquanto nossos pacientes depressivos ruminam sobre suas fantasias de que seu interior está se tornando negro, de que estão sendo envenenados. Tememos o desemprego e a característica dominante dos indivíduos depressivos é que eles não conseguem levantar para ir trabalhar, aponta Hillman.
Duas vezes mais mulheres do que homens de todos os grupos raciais estão propensos a sofrer de depressão, ele continua.
“A cultura maníaca é fundamentalmente uma cultura da testosterona. Isto começou no século XIX, as mulheres eram as portadoras de uma enorme quantidade de sintomas, que elas apresentavam aos médicos”.
“Hoje em dia esta depressão ultrapassou os limites que tinha no começo da psiquiatria. Está na juventude, nas crianças, e o termo é usado muito amplamente. Mas é muito importante se voltar para que tipo de experiência aquela pessoa (que sofre de depressão) está passando.”
“Na prática, as pessoas dizerem que estão deprimidas é insuficiente, não é o bastante. Eu quero saber o que, onde, como, quais são os correlatos físicos, o que você come, o que acontece quando você está naquela cadeira e quando você se levanta da cadeira. Quero saber um monte de coisas sobre seu corpo.”
É saber o que aquela experiência depressiva está lhe dizendo como clínico, eu penso, se distanciando do diagnóstico e chegando ao âmago da experiência. Eu divago momentaneamente e penso a respeito do horário maníaco que mantenho há tanto tempo, relembrando como me sinto quando diminuo a velocidade por um minuto. Sinto-me bem por perceber o momento, eu penso, enquanto volto para a lista dos correlatos depressivos de Hillman.
“Cabelos secos, respiração curta, suspiros freqüentes, um tom diminuído ou nulo para tudo, sonolência e semblante sofrido, com uma seriedade diferente da ansiedade. Isto é muito importante. Tudo parece tão pesado, opressivo. Os romanos a chamavam gravitas, ela pertence a Saturno,” ele continua.
“Em seu treinamento você provavelmente escutou que a depressão é pior durante a manhã. Porque é que a depressão é pior durante a manhã? O que é que isto diz a respeito do dia no qual você está entrando? Será que é porque não tem um tom menor na música que tocam no rádio de manhã, porque você tem que acompanhar o nascer do sol? Temos que encontrar algum sentido nas coisas que observamos.”
Então, qual é o sentido que você encontra nisso, eu penso, ficando um pouco impaciente com o ritmo no qual ele está se movendo. Novamente, quase intuitivamente, Hillman sugere um intervalo e, na volta, liga um vídeo para passar um documentário britânico, entitulado “Kind of Blue”. Hillman é um dos primeiros entrevistados do documentário.
“Uma das coisas que você não quer ser é interrompido,” ele diz, agora com 6 metros de altura e em cores extremamente nítidas na tela, um vulto aparecendo gradualmente para a platéia.
“Você pode continuar, continuar, continuar na base de café e estimulantes. Quando você assiste os heróis na TV eles nunca se cansam. (Mas) a lentidão é básica para a noção de melancolia desde a sua primeira origem. A mania é com frequência descrita na psiquiatria como a ausência de tristeza. Perda significa perder o que se foi. Nós queremos mudar mas não queremos perder. Sem tempo para a perda não temos tempo para a alma,” ele diz retornando ao ponto.
“A melancolia nos leva a um lugar onde podemos ver mais claramente as essências da vida,” diz Jules Cashford, um escritor, ao entrevistador.
A alma conhece o caos da cultura em que vivemos. De alguma forma, se você não está de luto, você está desconectado do mundo. Então, a depressão subjacente é uma adaptação à condição obscura do mundo, explica Hillman. Toda vez que alguém cai em depressão todo mundo vem ressuscitá-lo, e temos as drogas e a terapia convulsiva para tratá-lo. Na vida comum, apenas nos levantamos e nos movemos novamente para evitar a depressão, ele continua.
O filme acaba, Hillman encolhe novamente ao seu tamanho normal e retoma a fala ao vivo. “Este filme foi considerado muito lento para a platéia americana, conseqüentemente, foi rejeitado pela PBS. Este filme pode ser parte da evolução da psicoterapia,” ele graceja, convidando o público às perguntas.
Um membro da platéia profere timidamente que ele luta para reconciliar o humanista existencial com o cientista nele mesmo quando se depara com um cliente deprimido. Será que eu ataco a depressão de uma maneira hábil ou me sento com as questões existenciais desconfortáveis que a depressão levanta?
A questão aborrece o Hillman impressionista: “Eu sugiro que você se sente com seu humanista existencial e seu cientista e que vocês três tentem chegar a uma conclusão,” ele retruca. O questionador se encolhe de volta em seu assento.
“Isto não é instrumentalismo, não é uma técnica que estou ensinando para vocês usarem. Vocês não vão persistir na esperança. Vocês vão manter a fé, e um dos caminhos da terapia que parecem mais úteis não é que você faça alguma coisa, mas que você mantenha o contato. Você é um acompanhante crônico, consistente, ao invés de ser um terapeuta que faz alguma coisa contra o problema,” ele diz.
“O que acontece é que você se torna ativado pelo silêncio ou a caída. Contra a paralisia existem os métodos super ativos de tratamento. A terapia eletroconvulsiva foi desenvolvida por um italiano que também desenvolveu fusíveis para aeronaves,” ele diz como que contando um segredo. “Na história do tratamento da depressão, havia o dunking stool (técnica de tortura onde se afogava a vítima), a purgação da bílis negra do intestino, tentativas de chocar o paciente. Todas estas tentativas representam o ódio ou a agressão contra o que a depressão representa no paciente.”
Mas Hillman não censura o tratamento du jour para a depressão – psicofarmacologia.
“Não existem razões para não tirarmos vantagem das medicações. O importante é a sua atitude perante isto, como você mantém aquele demônio em seu lugar para que não tome conta de você.” O truque, ele reitera, é manter o foco no que o paciente está sentindo, pensando, e imaginando.
“Não tenho a intenção de achar maneiras de acabar com a depressão. A depressão traz a lentidão, um movimento contrário à mania, intimidade. Ela abre a porta a algum tipo de beleza. Logo, parece haver algo lá dentro além da forma como você, o ego, enxerga,” ele conclui, completando uma imagem tosca e impressionista de um dos mais valiosos iconoclastas do mundo, que é muito mais valiosa do que aquela que pode ter sido apreendida pela minha câmera.
Tradução de Gustavo Gerhein
““Não existem razões para não tirarmos vantagem das medicações. O importante é a sua atitude perante isto, como você mantém aquele demônio em seu lugar para que não tome conta de você.” O truque, ele reitera, é manter o foco no que o paciente está sentindo, pensando, e imaginando.”
Marcelo
Confesso que esse texto me pareceu um pouco confuso. Não consegui entender ao certo a posição de Hillman. Gostaria que me explicasse quando puder!
abraço!
Bete,
o James Hillman está falando sobre a mania de usar medicações para modalizar o humor, criando dependência. Remédio para ficar alegre, remédio para não ficar muito animado, enfim, uma busca do “normal” que cria robôs.
Obrigada pela atenção. Era mais ou menos o que estava pensando.
boa semana!