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Entrevista com Joseph Campbell

Campbell

Uma Entrevista com Joseph Campbell

Escrito por Josenildo Marques

em 24 Agosto, 2007

A entrevista abaixo foi publicada no The Goddard Journal (vol. 1, nº 4) em 9 de junho de 1968. Nela Joseph Campbell fala sobre metodologia no estudo dos mitos, hinduísmo e o livro que estava para lançar: o quarto volume de As Máscaras de Deus, que é sobre o que ele chama de Mitologia Criativa. Esse livro ainda não foi traduzido para o português, portanto creio que minha tradução dessa entrevista, provavelmente a primeira a ser feita, possa oferecer uma boa introdução ao tema central do livro.

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I – Em seus estudos sobre mitologia, você tem usado seu conhecimento de psicologia e psicanálise para interpretar mitos. Você acha que mais poderia ser conseguido se houvesse maior variedade de metodologias à disposição?

C – Sou contrário a metodologias por que acho que elas determinam o que você vai aprender. Por exemplo, o estruturalismo de Lévi-Strauss. Tudo o que vai achar é o que o estruturalismo permitir que você ache. E um olhar aberto aos fatos que estão na sua frente vai ser impossível dessa maneira. Parece-me que assim ele se fecha para iluminações.

I – É culpa da metodologia em si ou da inabilidade da pessoa para usar a metodologia como uma ferramenta de maneira mais flexível?

C – Sim, sem dúvida, o caminho flexível é o mais apropriado. Você tem que saber correr, andar, parar e sentar-se. Mas se quiser ficar só sentado, então vai limitar sua experiência.

No anos 20 e 30, o funcionalismo estava na moda. Você não podia fazer comparações interculturais; você tinha que interpretar tudo de acordo com o que conhecia da cultura local. Seria como examinar o apêndice no corpo humano para determinar a condição do homem moderno. Você tem que seguir sua origem e descobrir que uso tinha em tempos remotos.

De maneira similar, muitos dos elementos de uma cultura são vestígios de usos anteriores, de funções remotas. E esses homens, por exemplo, Radcliffe-Brown, em seu livro (que considero esplêndido) sobre os habitantes das Ilhas Andamã, falha em entender aqueles mitos. Eles estão todos na frente dele e sua abordagem não responde as perguntas. Tudo que tem que se fazer é um pouco de comparações e se vai descobrir que as interpretações aparecem. Ficando preso a um método, ele limita sua visão e falha na interpretação daquela cultura.

I – Eu suponho que a tendência a totalizar a metodologia na ciência poderia ser comparada ao processo de totalização na religião, na qual a chance de uma revelação é, de alguma maneira, diminuída se não for erradicada porque as estruturas são congeladas, os rituais são congelados. E a vitalidade, o princípio interior de vitalidade, parece ficar estultificado.

C – Bem, concordo com isso plenamente. E eu acho que essa ênfase na estrutura, neste ou naquele método, é um tipo de desdobramento do monoteísmo. E noto que estudiosos judeus são mais inclinados a isso do que os outros. Ele tem que ter apenas um modo de interpretação. Veja os marxistas e os freudianos – e agora vem o estruturalismo de Lévi-Strauss, e nada mais conta. É incrível. É só a nossa panelinha aqui e qualquer prova que não se encaixe deve ser descartada. Tenho uma teoria sobre isso…

I – Lembro-me imediatamente de O Futuro de uma Ilusão de Freud, em que ele discursa sobre a origem do monoteísmo a partir da estrutura, do pai; e sabemos que as famílias judaicas trazem isso da figura paterna. Talvez essa seja uma das raízes psicológicas para esse tipo de abordagem estreita sobre a existência.

C – Exato. Em Totem e Tabu, Freud diz: “Admito que não consigo explicar as religiões matriarcais”. Esqueci a página, mas está em muitas palavras.

I – É algo que ele não consegue entender.

C – Não consegue porque o que ele está seguindo em Totem e Tabu é a horda do pai, o clã do irmão e as religiões patriarcais. Essa é a seqüência lá…Mas, e o culto à Grande Mãe?

No início, a tradição hebraica é a tradição do guerreiro-caçador, não é a de um povo sedentário que cultiva a terra e faz comércio. Entende? E é dessa última que se origina a grande civilização: agricultura, domesticação de animais, não do caçador errante. Os caçadores são todos guiados pelo princípio masculino: é o homem que traz a comida. Os povos plantadores são guiados pelo princípio feminino: a mulher é análoga à terra, que procria e nutre. Portanto, o Dr. Freud, com seu tipo de antipatia patriarcal para com o princípio feminino, não consegue lidar com isso.

I – Eu sei que não se pode ter uma ação trágica sem uma causa primordial, porque sem um objetivo não há como voltar ou até mesmo uma percepção trágica como acontece com Édipo. Não conseguiria imaginar Édipo Rei sendo escrito por um chinês, ou não poderia imaginar algo como Édipo Rei saindo da cultura oriental. Como você explica isso?

C – Tive uma experiência interessante sobre isso. Quando estava na Índia, associei-me por algum tempo a uma companhia de teatro de vanguarda em Bombai que se chamava Unidade de Teatro. Era uma companhia constituída de indianos não-hindus em sua maioria. O colega encarregado da companhia tinha origem árabe e seu associado mais próximo era um judeu indiano. Há uma antiga comunidade judaica na Índia. Muito dos participantes eram parsis. Adivinhe o que estavam apresentando? Estavam apresentando Édipo Rei. Eles tinham sua clientela, que já estava acostumada a assistir o que estavam apresentando. Eu os assisti quando se apresentaram a seu público em Bombai e, alguns meses depois, quando eu estava em Nova Délhi, eles chegaram e apresentaram Édipo Rei a um público totalmente hindu.

Você não acreditaria! Eu estava lá sentado, já tinha estado na Índia o tempo suficiente para entender o ponto de vista do público – e que horror! Aquelas pessoas estavam completamente chocadas. Eu nunca tinha visto tamanho tapa na cara do público. Eles nunca tinham visto uma tragédia grega; nunca tinham visto uma; não sabiam nada sobre a tradição grega.

A ênfase na Índia é para eliminar o ego: ele não existe. Em sânscrito, não há nem mesmo uma palavra para indivíduo. Os indianos não são indivíduos. São membros de uma casta, são membros de uma família. Eles estão em certos grupos etários; e têm certo temperamento; tudo isso são coisas genéricas. Mas lá estava aquela coisa pessoal do tipo mais violento e a quebra de tabus. O público ficou horrorizado.

Você podia ver que era uma absoluta violação de tudo que já pensaram ver no teatro, em qualquer nível, porque não existe algo como a tragédia no Oriente. Como pode existir uma tragédia quando se acredita na reencarnação? A dramaturgia oriental é um tipo de teatro de conto de fadas: nuances amorosas e situações divertidas, mas nada muito sério. Aquele que sofre na tragédia oriental é aquele quem tem que sofrer de qualquer forma. É esse corpo impessoal. Deixem-no ir – quem se importa?

O herói, o tema enfatizado na mitologia hindu, não é a pessoa; é o Shiva reencarnado que nasce e morre. E os gregos transferem isso para a pessoa. No Oriente, a pessoa que falha na sua jornada é um palhaço, um louco. No Ocidente, é um ser humano.

Lembro que, muitos anos atrás, quando eu estava escrevendo o Herói de Mil Faces, quando quer que eu quisesse um exemplo de fracasso, tinha quer dar um exemplo grego. Por que os heróis gregos são aqueles que sofrem. Os heróis orientais são aqueles que estão na jornada através do mito.

I – Estou tentando me lembrar de um exemplo oriental da tragédia grega.

C – Você quer dizer algo que poderia nos dar um tapa na cara como Édipo Rex fez com os hindus?

I – Sim. Lembro-me que, embora não seja um paralelo, no curso da tragédia de Beckett Esperando por Godot. Para mim, a tragédia nessa peça está no público. Beckett tirou tudo, exceto o trágico, e deixando o trágico, só ele resta. É apresentado só o básico, tão completamente reduzido que a ofensa se torna devastadora.

C – Bem, posso dar um exemplo do que tocar o público ocidental tão forte quanto a tragédia ocidental que aquele público hindu assistiu, e é o sacrifício ritual hindu. Num desses sacrifícios, por exemplo, alguém tem que tirar a pele de uma cabra e tem que tomar cuidado para que a cabra fique viva até que a pele seja totalmente tirada.

I – Esse exemplo seria bom.

C – Esse seria, não seria?

I – E a mitologia africana?

C – Ah, é uma mitologia rica. Os treze volumes de Frobenius – The Atlantis – é magnífico. Muito rico.

I – Você fez algum trabalho nessa área?

C – Ah, sim, muito. Mas ela ainda não foi bem coligida em inglês. Os alemães e os franceses fizeram melhor, eu acho, do que os ingleses. A Inglaterra estava mais, sabe, no Congo, com armas e câmeras…

I – Stanley e Livingstone…

C – Sim. Os alemães e os franceses foram até ela. Agora os ingleses estão indo. Para mim, a coisa mais interessante nos estudos africanos recentemente é esse alinhamento da cultura nok com a cultura effie, validando a intuição que Frobenius tinha no início do século, da antiguidade daquele complexo cultural na África ocidental, datando-o em cerca de 1000 a.C. Frobenius foi o primeiro a reconhecer e estudar a África como uma unidade histórica, não apenas como um bando de tribos selvagens.

Por que Frobenius ainda não foi traduzido para o inglês?

C – Eu descobri Frobenius no período em que estava lendo como um louco durante a Grande Depressão, antes de 1932. Por volta de 1939, estava tão entusiasmado que entreguei os livros de Frobenius ao meu agente literário para ver se conseguíamos um editor. Tenho as cartas desses editores: “talvez interessem a alguma universidade afro-descendente, mas…” Por isso Frobenius ainda não foi traduzido. Mas o verdadeiro motivo é que a Sociedade Antropológica Americana não concordava com as proposições dele – ela é um desses grupos monoteístas. Frobenius defendia a idéia da difusão; ele era um difusionista, que é um palavrão para a Sociedade Antropológica Americana. E esse homem que era grandemente respeitado na Europa é desconhecido aqui.

Tenho uma amiga que escreveu livro sobre questões políticas internacionais e foi a um editor que conheço muito bem. O livro foi rejeitado por esse editor porque ela só citava Frobenius.

I – Estou curioso para ver seu quarto volume.

C – O quarto volume vai sair no dia 20 de maio. Daqui a um mês depois de amanhã – e acredite – estou contente. Trabalhei nele por quatro anos. Demorou um ano para os editores conseguirem publicá-lo. Foi um pouco complicado, mas não vai saber quando lê-lo.

I – Você poderia falar um pouco do que trata neste volume?

C – Claro. É um livro que trata do que eu chamo de mitologia criativa. Na mitologia tradicional, à qual os três primeiros volumes são dedicados – a primitiva, a oriental e a ocidental – os símbolos mitológicos são herdados pela tradição e o indivíduo passa pelas experiências como planejado. Um artista criativo trabalha de maneira inversa. Ele passa por uma experiência de alguma profundidade ou qualidade e procura as imagens com as quais representá-la. É o caminho inverso. Por isso o título do livro é Mitologia Criativa.

Ele trata do primeiro problema que é a experiência estética, que eu chamo de “apreensão estética”, e então apresento uma análise da tradição imagética que os artistas modernos europeus herdaram. Temos a antiga tradição da Idade do Bronze; temos as tradições semita e hebraica; temos as tradições clássicas gregas. Também temos as tradições dos cultos de mistério e a tradição gnóstica; temos a tradição muçulmana, que era muito forte na Idade Média; temos a tradição celta e germânica e assim por diante. Esse é todo o vocabulário; é um tesouro maravilhoso no qual o artista vai buscar suas imagens.

De fato, elas vão coagular com ele se ele for um homem meio letrado. As imagens virão e vão se combinar com o que ele está dizendo. E eu cito como meu documento principal a tradição da literatura secular européia dos séculos XI e XII. Para juntar tudo isso, peguei a literatura que lidasse com temas comuns. Os dois temas comuns que, para mim, parecem apresentar uma influência dominante na escritura européia ocidental são o tema de Tristão e o do Santo Graal

. Começo com um grupo de escritores do fim do século XII e início do século XIII. Aí apresento ecos deles, primeiro em Wagner; depois a constelação em volta dele: Schopenhauer e Nietzsche; e seguindo até, é claro, Mann e Joyce

. Então, de maneira geral, vou e volto com o tema da terra devastada.

Rapaz, não é excitante? Esse conflito entre autoridade e experiência individual. Esse é meu tema principal do começo ao fim. E com ele vem a afirmação do indivíduo em sua experiência individual que só é possível hoje no mundo ocidental. Nossa religião foi importada do Levante com seu autoritarismo e até mesmo com a revolução protestante, que foi um tipo de triunfo do espírito individualista europeu, ainda apegado à Bíblia, então você tem que acreditar naquela coisa estúpida escrita Deus-sabe-quando. Mas a verdadeira literatura secular se desliga disso. E esse desligamento acontece com o Graal. É claro que ela começa a florescer justamente na época de Inocêncio III, o mais autoritário dos autoritários, mas acabou – parou bem ali, por volta de 1225-1230. A Inquisição é trazida à baila em 1232 e aí temos que esperar. E aí acontece a grande mudança. É claro que aí tenho que fazer uma ponte. Tenho que ir do começo ao fim. Mas é incrível o quanto devemos a uns poucos que fizeram tudo o que temos, que tiveram a coragem de dizer ‘vocês estão errados’. Eles são meus heróis. Mas temos também uma heroína, a primeira, e é ela quem começa tudo, seu nome é Heloísa. A Heloísa de Abelardo, ela é a rainha do livro. Em suma, é isso.

I – Você achou difícil juntar todas essas coisas e chegar a essas conclusões?

C – Ah, não, nenhum problema; foi o material mitológico que me mostrou tudo isso. Não tive problemas em compor as idéias desses livros porque tenho lido esse material por literalmente quarenta anos. O problema foi comprimir tudo em quatro volumes. Minha intenção inicial era um volume, e foi isso que combinei com a Viking Press. Minha cabeça estava estourando e me lembro vividamente que, num dia de manhã, acordei às quatro da manhã sabendo que eram quatro livros, sabendo sobre o que tratariam, engatinhei para fora da cama, de cabeça, para não incomodar minha esposa, e fui ao quarto de estudos e planejei a coisa toda.

I – Engraçado que tanto William James quanto Freud tiveram experiências semelhantes quando estavam nessa fase criativa. Freud acordou às duas da manhã e James, às três.

C – E eu, às quatro…está vendo?…Por isso eu tinha mais a dizer!

Além disso, permito-me ir mais passionalmente do que ia nos livros anteriores porque realmente penso que o clero merece uma boa sova. Eles sabem que o que eles estão ensinando já ficou para trás, mas ficam tentando trazê-lo de volta. Recentemente tenho tido experiências bem agudas nesse contexto. Aqui estou eu, alguém cuja vida toda foi dedicada à mitologia, e a igreja agora, parece, está interessada em mitologia. Então eles me convidam para esses diálogos e triálogos e tetrálogos e assim por diante. E quando coloco o que considero o credo tradicional cristão, até mesmo os padres anglicanos levantam suas mãos e dizem, “Ah, mas não acreditamos mais nisso”.

Mas eles ainda continuam com aquele livro. O que eles acreditam agora é no amor e na humanidade e tudo isso. Eu digo a eles: bem, você acha isso nos Upanishads, em Lao-Tsé; você pode achar isso em qualquer lugar, então qual é a sua declaração? Eles continuam afirmando que são únicos. Ora, São Tomás de Aquino disse que até um grego acreditava em Deus, mas um grego não acreditava que havia um pai, um filho e um espírito santo; que o filho tornou-se homem e foi crucificado e através dessa crucificação redimiu o homem do pecado original. Coloquei isso há apenas cinco dias e o bispo Fulano de Tal disse, “Ah, mas não falamos mais assim”.Então, o que dizem? Ainda assim, eles continuam com aquela reivindicação. Estão protegendo sua fé, estão mesmo – isso é engraçado. Esse movimento ecumênico na Igreja Católica é uma piada porque estão se apegando a sua exclusividade. Estão tentando dizer, sem dizer abertamente, que você tem quer ser batizado para ser salvo – não podem dizer algo diferente e continuar sendo católicos.

O homem é redimido pelo sacrifício de Cristo; participa-se do sacrifício participando dos sacramentos, que foram fundados pelo próprio Cristo e, fora disso, “fora da igreja não há salvação”. E com relação aos protestantes, sempre me lembro do personagem Stephen Dedalus de James Joyce, que diz no final do Retrato, quando lhe perguntam “Você vai se tornar um protestante?”, e ele responde, “Perdi minha fé, mas não perdi o respeito por mim mesmo”.

O sentido do mundo

por Klaus Manhart
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Tomado de paixão pela encantadora princesa Europa assim que a viu colhendo flores na praia, o deus grego Zeus elaborou um astuto plano. Transformado em touro, Zeus se aproximou dela e deixou-se acariciar. O touro parecia tão amigável que Europa subiu em seu dorso. O animal então avançou para o mar, levando a moça. Após chegarem a uma praia longínqua, Zeus transformou-se novamente em um jovem e prometeu proteger Europa em sua nova terra, batizada com o seu nome. O ardil funcionou e o casal teve três filhos.

Parece que os gregos apreciavam intrigas e peripécias. O enevoado Monte Olimpo era uma espécie de mundo melodramático. Os deuses que aí habitavam armavam ciladas uns contra os outros e sempre demonstravam fraquezas, particularmente em relação à beleza do sexo oposto. Para alcançar seus interesses, formavam alianças, lutavam e até matavam.

Estavam longe de ser perfeitos. Suas características humanas ajudam a explicar por que os mitos da Grécia antiga ainda nos satisfazem: se os deuses apresentam falhas humanas, então os homens podem se persuadir de que são capazes de ser como os deuses.

Mas isso não basta. Por que é tão fácil aceitar essa mitologia? Em parte, porque certas funções de nosso cérebro insistem em impor ordem e propósito nas coisas que o cercam e que, de outra forma, seriam enigmáticas. Por mais racionais que tentemos ser, nossos cérebros não podem resistir ao ímpeto de adotar relatos metafísicos.

Explicando o inexplicável
Os mitos são muito mais do que melodramas. As culturas antigas usavam essas histórias fabulosas para explicar os misteriosos fenômenos naturais que determinavam sua existência. Os egípcios invocavam centenas de divindades que controlavam o destino do rio Nilo e de seus povos. As águas do rio e as cheias anuais presidiam suas idéias sobre a criação, a morte e o renascimento. Segundo as crenças da época, quando a vida surgiu o oceano primordial Nun ocupava todo o Universo. Assim como os deuses criaram a vida com as águas do Nun, as cheias do Nilo fertilizaram as terras habitadas por maravilhosos animais e plantas.

As formas iniciais de práticas religiosas e espirituais datam de pelo menos 40 mil anos atrás, período que muitos pesquisadores associam à emergência do comportamento humano moderno. Várias pinturas de cavernas e escavações do período sugerem que esses povos acreditavam em poderosas forças sobrenaturais passíveis de serem invocadas em seu favor. Baseados em descobertas feitas em sítios arqueológicos como o de Qafzeh, em Israel, pesquisadores apontam que os humanos anatomicamente modernos realizavam funerais e outros ritos em período ainda mais remoto, há mais de 90 mil anos. Outros pesquisadores sustentam que os neandertais também desenvolveram um sistema de mitos e crenças religiosas.

É claro que há enorme variação entre os sistemas míticos de diferentes culturas humanas, mas todos oferecem respostas às mesmas questões fundamentais. Foi essa a conclusão alcançada pelo mitólogo americano Joseph Campbell antes de morrer em 1987. Durante décadas, Campbell pesquisou os motivos comuns de inúmeras lendas e religiões de sociedades antigas e modernas, incluindo gregos, romanos, egípcios, asiáticos e nórdicos.

Campbell apontou a existência de três atributos. Em primeiro lugar, o mito envolve uma questão existencial sobre a morte e o nascimento ou criação do mundo. Em segundo lugar, o mito contém enigmas suscitados por contradições insuperáveis: criação e destruição, vida e morte, deuses e homens. Por fim, o mito tenta reconciliar esses pólos opostos e assim atenuar nossos temores.

Histórias necessárias
Com o tempo, os relatos míticos passaram a fazer parte das crenças e religiões, influenciando, ainda hoje, o modo como os povos vivem e compreendem o mundo. Esse saber tradicional é parte de nossa cultura, razão pela qual ele ainda persiste, mesmo em sociedades progressistas e tecnológicas.

Mas talvez isso não seja tudo. No final da década de 90, o radiologista e pesquisador da religião Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene G. d’Aquili, ambos da Universidade da Pensilvânia, começaram a estudar as fontes cerebrais dos sentimentos religiosos. Em 2001, Newberg publicou inovadores resultados (D’Aquili falecera) baseados no monitoramento da atividade cerebral de monges em meditação e de freiras franciscanas em prece.

Quando as pessoas estudadas estavam em estado de profunda contemplação religiosa, os pesquisadores registraram atividade drasticamente reduzida numa parte específica do lobo parietal. Essa região é responsável pela orientação espacial e pelo senso do próprio corpo: é ela que nos torna consciente de onde nosso corpo termina e o resto do mundo começa, permitindo assim a clara distinção entre nós e todo o resto.

Newberg e D’Aquili postularam que os sentimentos religiosos têm base neurológica, pois a ausência de bombardeamento neuronal na região parietal parecia associada à sensação de êxtase espiritual. Eles concluíram que o impulso religioso – o anseio de experiência metafísica – estava inscrito no cérebro.

Alguns pesquisadores apontam que os mitos podem ter outro fundamento biológico. Humanos, ao contrário dos animais, têm capacidade de abstração, o que permite antecipar ameaças. As respostas fisiológicas do medo podem ser desencadeadas simplesmente mediante a representação de um perigo, que prepara o corpo para “lutar ou fugir”. Essa capacidade também permite a atribuição de sentido ao sofrimento e à morte. Por exemplo, podemos raciocinar que vale a pena suportar a dor causada por uma vacina, já que os benefícios de jamais contrair a doença compensam.

Reunindo essas observações, D’Aquili cunhou o termo “imperativo cognitivo” para descrever essa função do cérebro de dar significado às coisas. Temos um desejo de ordem e sentido que é biologicamente condicionado. Diante de qualquer situação ou processo, não podemos deixar de atribuir-lhes algum propósito. Os fisiologistas Michael E. McCullough, da Universidade de Miami, e David B. Larson (recentemente falecido), então no Instituto Nacional para Pesquisa em Saúde, estenderam esse conceito ao que chamaram de anseio ontológico: a necessidade de compreender a natureza fundamental do mundo em vez de simplesmente aceitá-la como é. Segundo essa hipótese, o imperativo cognitivo força nosso cérebro a pensar incessantemente, de tal forma que não podemos deixar de elaborar relatos e mitos que expliquem os mistérios que nos rodeiam.

Causa e efeito cósmicos
A capacidade de construir explicações para os fenômenos é chamada por Newberg de “operador causal”. Trata-se de uma das oito funções analíticas gerais do cérebro, que Newberg e d’Aquili denominaram “operadores cognitivos”. Quando um operador está ativo, várias regiões do cérebro são envolvidas. Juntos, os oito operadores regulam o funcionamento da mente humana. Embora ainda controverso, esse esquema ganha aceitação cada vez maior.

O operador causal interpreta a realidade como uma cadeia de causas e efeitos. Se a campainha está tocando, provavelmente alguém está na porta. Se chover, a rua ficará molhada. Estimula a curiosidade, nos motivando a decifrar os mistérios e permitindo que elaboremos explicações empíricas para os processos naturais. Mas o operador também tenta criar relações de causa e efeito para enigmas metafísicos como a morte e a criação do Universo. As pessoas que sofrem de certos tipos de lesão no cérebro não conseguem vincular nem mesmo os eventos mais simples às suas causas.

Os outros sete operadores cognitivos proporcionam contexto para o operador causal. O operador holístico permite que percebamos o mundo como um todo. Graças a ele, compreendemos imediatamente e sem esforço que uma configuração de folhas, troncos e galhos constitui uma árvore. A atividade no lobo parietal direito é a base desse operador. O operador reducionista funciona de modo inverso, permitindo a decomposição do todo em suas partes componentes. Sua base é o hemisfério esquerdo, mais analítico. O operador de abstração deriva conceitos gerais de fatos individuais, possibilitando, por exemplo, que classifiquemos bassês, pastores e cockers em uma única categoria: cães. Estudos recentes de imageamento indicam que essa função está baseada no lobo parietal esquerdo.

O operador existencial nos dá a sensação de que os dados provenientes dos sentidos e processados pelo cérebro têm base na realidade. Essa função está, provavelmente, baseada no sistema límbico. O operador emocional também fica nessa parte: vincula as percepções aos sentimentos e constitui a base de nossa capacidade de pensar e julgar racionalmente.

O operador quantitativo avalia tamanho, quantidade, tempo, distância e calcula matematicamente. O operador binário nos ajuda a impor ordem aos mais variados fenômenos do meio circundante, medindo o espaço e o tempo por meio de noções opostas: em cima e embaixo, direita e esquerda, dentro e fora, antes e depois. Esse operador está localizado no lobo parietal inferior; pacientes com lesões nessa área não podem identificar os opostos de palavras ou objetos.

Para Newberg e D’Aquili, o operador binário desempenha papel crucial na formação e persistência dos mitos. Além de nos ajudar a reduzir a complexidade das situações, fornece uma heurística simples e rápida para nossa orientação ao elaborar os elementos centrais do mito: bem e mal, nascimento e morte, céu e terra, isolamento e integração.

Expandindo a conexão entre operadores cognitivos e sistemas de crença, Newberg e outros pesquisadores sustentam que certas áreas do cérebro cumprem papel fundamental na experiência religiosa. Embora essa perspectiva ainda seja controversa, parece claro que a capacidade de pensar por meio das noções de causa e efeito seria impossível sem uma determinada estruturação funcional do lobo parietal. Provavelmente, os seres humanos procuram explicações para os mistérios do mundo simplesmente porque o cérebro tem essa capacidade.

O autorO autor

Klaus Manhart é sociólogo, filósofo da ciência e escritor free-lance em Munique.
– Tradução de Alexandre Massella

Para conhecer mais
O poder do mito. Joseph Campbell, Palas Atena, 1993.

Cerebral blood flow during meditative prayer: preliminary findings and methodological issues. Andrew Newberg et al., em Perceptual and Motor Skills, vol. 97, no 2, págs. 625-630, 2003.