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A Importância da Arte na Vida

>>> Abaixo segue uma entrevista com Ana Mae Barbosa, Doutora em Arte Educação, ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, em 12/10/1998.

Paulo Markun: Boa noite. Ela tem chamado a atenção sobre a importância do ensino de arte no país e diz que uma sociedade só é desenvolvida quando é artisticamente desenvolvida. No centro do Roda Viva esta noite, a doutora em arte educação, Ana Mae Barbosa.
[Comentarista Valéria Grillo]: Uma recente pesquisa feita pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo deu a medida da distância existente entre público e arte. 63% dos paulistanos maiores de 14 anos nunca vão a museus, galerias ou exposições de arte. Esse escasso contato entre arte e público é um dos reflexos de 50 anos de educação modernista, que ensina a fazer, mas não ensina a apreciar e a compreender a arte. Esta interpretação é de Ana Mae Barbosa, o mais importante nome da arte-educação brasileira da atualidade. Professora de arte-educação da Universidade de São Paulo, também foi diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP e professora visitante de várias universidades nos Estados Unidos e Inglaterra. Já publicou uma dúzia de livros sobre ensino da arte, defendendo a idéia de que as escolas devem ensinar a criança, não apenas a fazer arte, mas a entender e a ter prazer com a arte. A alfabetização visual influi na capacidade crítica das novas gerações e precisa ser muito bem considerada quando se pensa na formação da cidadania. [Fala de Ana Mae Barbosa]: “Você acha possível desenvolver consciência de cidadania sem um conhecimento claro da história do país do qual você é cidadão? Ou da arte do país do qual você é cidadão? Porque o artista é aquele que configura a imagem da sua cultura”.
[VTs de matérias nas ruas]:
Entrevistado: O que é a arte? Definir a arte é meio difícil.
Entrevistado: Tudo o que a gente vive é arte.
Entrevistado: Cinema, teatro.
Entrevistada: Tapeçaria, pintura.
Entrevistada: São os quadros?
Entrevistado: Arte é música.
Entrevistada: Tudo que você pode mexer e transformar.
Entrevistada: Arte é tudo de bonito que a gente vê.
Criança 1: [recitando] Ontem me “cordei”, fui ao banheiro e me banhei…
Criança 2: [Mostrando seu desenho] Desenhei uma casa com uma chaminé, e o sol, um matinho e uma nuvem.
Criança 1: [recitando] Me “pãozei” e me “cafezei”.
Criança 3: Eu terminei. [avisando que terminou de pintar o rosto]
[VT de Chico Lu]: [professor de literatura, mostrando em uma cartolina a palavra  Brasil escrita com letras estilizadas – com carinhas, corpinho, diferentes cores]. Eu perguntei a ela por que fez o Brasil todo tortinho, o que ela queria dizer com isso? Ela falou: “Olha, o Brasil está tudo errado, tem um monte de coisa errada, é por isso que eu pus, o B para cá [virado para a esquerda], o L para lá [virado para a esquerda]”. Através dessa palavra, ela fez uma crítica bem maior do que qualquer discurso que a gente possa estar ouvindo por aí.
Paulo Markun: Para entrevistar a professora Ana Mae Barbosa, nós convidamos a escritora de literatura infantil, Ruth Rocha; a jornalista Helena Katz, crítica de dança do jornal O Estado de S. Paulo; o artista plástico Sílvio Dworecki, professor da Faculdade de Arquitetura da USP, que está lançando o livro Em busca do traço perdido; a jornalista Ana Maria Sanchez, especializada na área de educação; a professora Vera Bastazin, do Departamento de Arte da Universidade Católica de São Paulo; o arquiteto Dario Vizeu, consultor cultural da TV Cultura de São Paulo e a atriz Ligia Cortez, que trabalha com crianças no Teatro Escola Célia Helena e está ensaiando a peça “Cacilda”, de José Celso Martinez Corrêa. Boa noite, professora Ana Mae.
Ana Mae Barbosa: Boa noite.
Paulo Markun: Diz-se por aí que arte não se ensina, que arte não se aprende. Por que então ensinar a arte?
Ana Mae Barbosa: Eu acho que quem diz isso tem um conceito errôneo de educação. [Vê a] educação como aquela educação bancária, como diria Paulo Freire, da informação, da encucação, do dirigismo. Mas educação como é concebido atualmente, é um processo de liberação, um processo de conscientização das suas experiências, eu acho que nesse sentido a arte se ensina e se aprende. Agora, é ainda mais difícil dizer que a arte não se aprende, porque eu acho impossível um artista dizer que a sua arte já começa configurada, e vai configurada da mesma maneira até o fim da sua vida. O artista vai trabalhando com os materiais, com as idéias, com o mundo que o cerca, com os conceitos de arte, e ele vai aprendendo e mudando.
Paulo Markun: Mas não há uma contradição entre escola e arte? Porque escola, na cabeça das pessoas, de um modo geral, é um lugar onde você vai aprender disciplinas que têm conteúdo, que têm uma estrutura rígida, onde 2 mais 2 são sempre 4; onde você tem regras, por exemplo, para o português, onde você decora ou você aprende quais são os afluentes do rio Amazonas. E quando se vai para a aula de artes, em quase todos os campos, em todas as escolas do país, é muito diferente. É um lugar onde a criança tem liberdade total e aí ela se diverte pra chuchu, mas aquilo nem sequer é contabilizado na nota do final do ano.
Ana Mae Barbosa: Arte não tem estruturas rígidas, mas tem conteúdo. Especialmente hoje, quando o ensino da arte pressupõe que arte na escola é expressão e é cultura também. Há um enorme arsenal de conhecimento acerca da arte. A arte é tão importante que existe desde o tempo das cavernas. E apesar de todos os embates contra a arte, apesar de a arte ser em geral colocada como um dos últimos valores humanos – por que afinal de contas, quando você tem uma crise econômica no país, a primeira coisa que se corta é o dinheiro para a cultura, o dinheiro para a arte. Na escola a mesma coisa. Quando há uma crise educacional, a primeira disciplina que se corta é a arte. Mas apesar disso, resiste até os dias de hoje porque a arte é o esforço do ser humano para representar o mundo ao seu redor e representar também os ritmos constantes da vida. Então o ensino da arte hoje mudou muito. O modernismo entronizou a importância da expressão para a criança, para o adolescente e para o adulto. Liberou o adulto de normas rígidas e prescrevia a idéia de que a arte é interioridade e que você precisa liberar a sua expressão para organizar as suas imagens, fazer uma espécie até de edição de imagens. Você capta imagens ao seu redor e as reorganiza e as expressa. Hoje, além disso, eu acho importantíssima a expressão através da arte na escola – é uma maneira de aprender a se conhecer – há também a ênfase do aprender a arte, no analisar a obra de arte, no ver a obra de arte, inclusive até em aprender conhecimentos históricos acerca da arte. Eu acho que essa idéia de ver arte na escola, de analisar obra de arte é muito importante para a alfabetização visual. O mundo que nos cerca está cheio de imagens, ele informa através de imagens; é a televisão, o computador, o outdoor, enfim, somos bombardeados pelo conhecimento através da imagem, que até é captado inconscientemente por nós. E a análise da obra de arte vai ajudar você a ler qualquer outra imagem: a imagem da publicidade, a imagem do outdoor, enfim, as imagens que nos cercam.
Ruth Rocha: Eu tenho a impressão que essa confusão de se dizer que arte não se aprende não estaria no fato de que uma coisa é aula de arte, escola de arte, ensino de arte, ensino da compreensão da arte, da interpretação da arte e a formação do artista? Não há uma diferença entre uma coisa e outra, grande?
Ana Mae Barbosa: Há sim uma enorme diferença. Nós não estamos falando do que é a escola, nós estamos falando de uma escola, da chamada escola fundamental, onde você não pretende formar nenhum profissional ainda. Você não pretende formar o artista, como não pretende formar o matemático, como não pretende formar o novelista etc. Todas essas áreas, todas essas disciplinas contribuem para o desenvolvimento integral da compreensão do mundo.
Sílvio Dworecki: Mas nós sentimos que existe um preconceito de fato com a arte, Ana Mae, esse é um dado da realidade. A arte quase que desaparece das escolas quando a criança chega ao primeiro grau. Ela é muito bem aceita nos asilos, nas prisões, no maternal, ou seja, ela é dada com carinho para aqueles seres que estão fora da produção econômica, fora da produção material, dos bens materiais da sociedade. E acontece que você mesma diz aqui no seu livro, Tópicos utópicos, que “em um país onde os políticos ganham eleição, através da televisão, a alfabetização para a leitura é fundamental e a leitura da imagem artística, humanizadora” [Sílvio lê o trecho]. Mas nós lutamos com esse preconceito, nós lutamos com uma arte da qual não se vê utilidade. Uma arte com a qual o indivíduo passa a ter contato, e quando termina o seu horário produtivo do trabalho, ele chega em casa e liga o televisor, e é bombardeado por alguma coisa que a gente não chamaria de comunicação e sim de informação. Eu lhe pergunto: será que essa socialização da mediocridade também através dos meios de comunicação de massa, esse alijamento quase que da arte da escola, como ficamos nós, esses Dom Quixotes [referência ao personagem principal do livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de 1605, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), um dos livros mais famosos da história, cujos personagens principais são um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro – Sancho Pança – caminhando à procura de aventuras, defendendo donzelas e atacando inimigos imaginários], buscando sensibilizar as crianças? Que cidadãos são esses que nós estamos formando? Aliás, eu não sei se é uma pergunta ou um excitamento para que você fale sobre isso.
Ana Mae Barbosa: Eu acho que nós somos Dom Quixotes, principalmente para convencer os políticos de que a arte é importante. Você mesmo foi uma pessoa que participou da enorme luta durante oito anos que nós tivemos para manter a arte no currículo das escolas. Aliás, manter mais ou menos, porque a lei de diretrizes e bases exige a arte na escola fundamental e média, mas como não determinou que a arte deve estar em todas as séries do ensino fundamental e do ensino médio, há escolas que estão colocando arte no primeiro ano do ensino fundamental e no primeiro ano do ensino médio e pronto, acham que é assim estão cumprindo a lei. Nós vamos ter que continuar lutando mesmo. Eu acho que tem outro aspecto que não é compreendido: a importância da arte para a melhoria de qualidade de muitas profissões. Você tem uma indústria cultural alimentadora da nossa economia; agora você tem pessoas trabalhando em revistas, em produção de revista, em produção de livros. Essas pessoas seriam melhores profissionais se conhecessem a arte. Eu não posso imaginar um bom profissional nessa área, sem ter ouvido falar na Bauhaus [uma das mais influentes escolas de design do mundo], você ser capaz de distinguir o que é um bom produto gráfico de um produto gráfico medíocre. Você tem a indústria de música também, a produção de discos, a produção de fitas cassete, não é preciso um bom profissional que conheça de música para saber quando o produto está bom?
Lígia Cortez: Ana, eu acho que o médico também ganha muito ao ter contato com a arte em algum momento da sua vida, ou principalmente na adolescência. No seu livro tem um excerto seu que eu achei fantástico de que a imaginação, as pessoas acham ou tem um preconceito de que seria só para os artistas, para os loucos ou para as crianças. E que isso de alguma forma desarticula uma sociedade ou desarticula uma escola, ou alguma coisa estabelecida tiraria da realidade. E que em certo momento, como a adolescência, é muito importante essa vivência para ter esse confronto consigo mesmo de que o adolescente é na vida e a arte tem esse sentido. Você não acha que o adolescente, tendo esse contato, não poderia ser um melhor profissional? Não necessariamente ligado a alguma coisa cultural, exatamente.
Ana Mae Barbosa: Inclusive o adolescente precisa da arte para expressar os seus conflitos, para descobrir quem ele é. É na relação da observação do mundo e da sua reflexão, como pessoa que expressa alguma coisa, que ele se encontra com mais facilidade. É lendo, é desenhando, é pintando, é fazendo teatro, fazendo música, que ele vai analisando o mundo ao seu redor e se analisando. Eu acho fundamental para a resolução de muitos conflitos na adolescência. Há, inclusive uma pesquisa muito interessante, mostrando que os adolescentes que trabalham com arte têm uma menor tendência à destruição, por exemplo, e, inclusive, trabalhando com arte nessa nova linha, que nós estamos discutindo, que é o fazer, o criar e o analisar a obra de arte. O modernismo deu muita ênfase à originalidade. A pós-modernidade no ensino da arte está dando muita ênfase à elaboração, à reorganização, à desconstrução e à reconstrução. Então são processos diferentes da capacidade criadora. Os quatro processos principais da criatividade seriam: fluência, flexibilidade, originalidade e elaboração. O modernismo deu importância à originalidade, mas a pós-modernidade, dando maior importância à elaboração, permite que se mobilize essa capacidade que o indivíduo tem de reorganizar o seu meio ambiente para se adequar. É não só exigir que o meio ambiente seja adequado a ele ou a ela, mas buscar adequar o meio ambiente às suas necessidades. E é essa função que está sendo muito enfatizada hoje no ensino da arte, e descobriram que há nos adolescentes delinqüentes uma enorme falha de possibilidade de elaboração.
Dario Vizeu: Ana, você falou aí em relação aos políticos, de convencer os políticos. Eu já estive dentro de escola, e a minha atividade era muito ligada à arte, quer dizer, eu dava um curso de vídeo. Eu queria saber de você, a sua experiência no seguinte sentido: no ambiente da escola, na relação com os outros professores, a atividade artística. Porque eu ouvi alguns comentários assim: “Aqui eles podem fazer o que eles querem e você está criando problemas, porque depois eles entram na minha sala e não é bem assim”. Ou vinha da diretoria… E aí como lidar com isso? Os pais, alguns deles não tiveram a possibilidade de estar em contato com o ensino da arte, também em relação aos filhos, dizem: “Aonde essa atividade vai levar o meu filho?” Quer dizer, eu tenho muita certeza, em relação ao português, à matemática, à física e à química. Mas em relação a essa atividade, aonde o meu filho vai? Então…
Ana Mae Barbosa: Então é o medo duplo. É um medo, porque se der certo, ele vai se tornar artista, e o medo que ele esteja perdendo tempo. É um medo duplo!
Dario Vizeu: Então veja, e aí é outro ponto que você coloca que é a questão do poder, que eu acho bastante interessante, que é assim. Alguns grupos da nossa sociedade estão inseridos em ambientes que participam intensamente da produção cultural, da história do país etc, e são grupos dominantes. E existe uma imensa maioria que não participa por esse problema, que eu não acho que é só político. Eu acho que eles estão também nos pais. A sociedade de certa forma, não é verdade, …?
Ana Mae Barbosa: Os outros colegas de outras disciplinas também…
Dario Vizeu: Os outros colegas… eles acabam restringindo. Então, de tal forma que o acesso à cultura, à história do país, esse cidadão é [de] um pequeno grupo, existe certa permanência disso na medida em que esse preconceito e essa restrição toda, no fundo, acaba fazendo, e nesse sentido quando a gente fala da televisão, eu tenho muito interesse, porque eu acho que a televisão é um lugar extraordinário, são milhões de telespectadores ali, e um pouco que a televisão consiga de espaço para discutir essas questões, você começa a ter milhões de brasileiros que começam a entrar nesse ambiente de discussão da obra de arte, da cultura do país. Isso que eu queria que você comentasse.
Ana Mae Barbosa: Eu concordo com seus comentários, é isso mesmo, é muito difícil convencer. Eu já vi experiências incríveis. Por exemplo, o [Museu] Metropolitan [de Arte] de Nova Iorque, tem, há uns 15 anos, um programa de arte para a criança ou adolescente com o seu responsável, ou pai ou mãe, ou quem cuida da criança, ele só recebe junto e trabalha junto. É um ateliê em que as crianças estão no meio ou os adolescentes e, ao redor das crianças, trabalhando também, desenhando e pintando, os pais e os adultos. Muita escola já adotou esse tipo de meio para convencer os pais – os pais que vêm e que reclamam que o filho está perdendo tempo fazendo arte – criar cursos para esses pais para convencê-los de que a arte tem conteúdo, de que há um conhecimento na arte, que há uma história, que se pode conhecer história através da arte. Está começando a haver uma mudança. Primeiro está começando a ser interessante a educação, não sei se vocês já notaram isso, e a educação deixou de ser aquela atividade que era medíocre falar sobre ela, e passa-se hoje a discutir muito educação. Eu organizei agora um curso, um projeto para o Sesc Vila Mariana, sobre a compreensão e o prazer da arte, com cursos mensais, inclusive [com] professores estrangeiros etc. Eu já havia organizado uns cem cursos antes com professores estrangeiros etc, nunca nenhum saiu em jornal, nunca nenhum teve imprensa. Esse curso teve mensalmente imprensa, entrevistas com os professores nos jornais. Então eu acho que a mídia já está alerta para o fato de que eles também são educadores, e que eles têm um compromisso com a educação, eu acho que há algo mudando. As escolas particulares tinham muita resistência ao ensino da arte, exatamente pela cobrança dos pais como você falou. Eles queriam dar o máximo possível de conteúdo para o aluno passar no vestibular. Hoje já percebe que arte é um conteúdo também, que a arte tem conteúdo e começam a se organizar para descobrir qual a sua abordagem metodológica mais adequada etc. Recentemente eu fiquei muito bem impressionada com uma coisa: a rede de colégios maristas organizou o primeiro encontro de ensino da arte, isso é muito sintomático. A outra rede é do Pitágoras, que é uma rede grande no Brasil inteiro, organizou o primeiro Congresso de Ensino da Arte também. Então…
Ana Maria Sanchez: E a escola pública, professora, a senhora acha que ela tem condições de oferecer um ensino adequado de arte, um ensino de qualidade?
Ana Mae Barbosa: Isso depende, eu posso lhe citar vários exemplos de grande sucesso. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, a escola pública na época da Esther Pillar Grossi [educadora brasileira, foi secretária municipal de Educação de Porto Alegre de 1989 a 1992 e deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul de 1995 a 2002], tinha projetos específicos de ensino da arte, preparava os professores. Para mim o grande problema da escola pública é a atualização do professor, atualização constante do professor…
Ana Maria Sanchez: E a formação do professor de arte, ela é adequada? Voltando um pouquinho, para não falar da atualização.
Ana Mae Barbosa: Não, ela não é mais adequada para esse ensino que se pretende dar. Esse ensino que na escola enfatiza a arte como expressão e como cultura, para esse ensino que está sendo dado na universidade, não é mais adequado. Mas veja bem, tem uma coisa positiva, Ana, é que é o seguinte: eu não sou nenhuma defensora dos famosos currículos nacionais. Eu acho que é algo a se pensar, é algo a se testar, algo a se pesquisar, mas essa é uma onda geral no mundo inteiro no mundo inteiro. Estados Unidos tem currículo nacional, a Inglaterra tem…
Ana Maria Sanchez: Espanha…
Ana Mae Barbosa: A Espanha tem, enfim, Portugal tem, e o Brasil, então nós temos também. Mas está acontecendo uma coisa curiosa. Esta reformulação do ensino que tem que atingir todos os níveis – o infantil, o fundamental, o médio e o superior – começou curiosamente pelo ensino fundamental. Isso vai dar chance à universidade de se perguntar: para essa abordagem mais culturalista do ensino da arte, que professor eu preciso formar? Então é a primeira vez que o ensino é reorganizado a partir do fundamental e não a partir da universidade. Isso dá alguma esperança.
Ana Maria Sanchez: Falando em currículo, por favor [dirige-se ao colega do seu lado direito], sabe-se que a senhora tem algumas restrições ao currículo para o ensino fundamental de primeira à oitava série que o Ministério da Educação preparou e lançou recentemente. A senhora poderia falar alguma coisa sobre isso?
Ana Mae Barbosa: Eu acho que as minhas restrições são até mais teóricas do que propriamente práticas. Eu acho que eles acertaram quando convidaram equipes de grandes especialistas. Ninguém pode duvidar da capacidade das pessoas que eles convidaram para fazer o currículo de arte. Uma das minhas grandes objeções é a “desestorização” [não-historicidade] da educação nesse currículo. Porque eles convidaram o professor César Cool [importante pensador espanhol que influenciou significativamente a reforma educativa ocorrida na Espanha, também é presença marcante na reforma educacional brasileira, em que atuou como um dos consultores dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais)], da Espanha, e as linhas gerais que ele deu para esses professores nacionais era não mencionar nenhuma outra conquista anterior, nenhum outro processo de ensino anterior e, inclusive procurar descaracterizar o que havia de histórico, mudando inclusive as próprias palavras. Veja bem, há muito de Paulo Freire nesse currículo, entretanto em nenhuma vez é usada a palavra conscientização, porque ela é marca de Paulo Freire, então não podia haver nada que pudesse ser identificado como algo histórico já do nosso país. Nisso eu me insurjo, eu acho que isso é quase fazer o que fizeram os espanhóis no México e no Peru: destruir a história para reinar.
Ana Maria Sanchez: Mas o que se pensou sobre o ensino da arte que está no currículo é algo com o que a senhora concorda ou não?
Ana Mae Barbosa: Eu tenho algumas objeções também. Veja bem. Nós viemos trabalhando já há muito tempo, não só eu, mas um grupo de arte-educadores com o que a gente chamou abordagem triangular, que é associar o ateliê, o fazer arte com a leitura da obra de arte, com a análise da obra de arte e com a contextualização, não só do fazer, mas da própria obra de arte que está sendo lida. Essa contextualização pode ser histórica, pode ser social, enfim, seguir o caminho. Para mim a grande vantagem dessa abordagem é que ela não determina disciplinas, mas o professor escolhe a disciplina. Para a leitura de obra de arte, ele vai escolher a disciplina em que ele for mais seguro nela; pode ser semiótica, pode ser gestalt, pode ser estética empírica, enfim, pode ser a disciplina com a qual ele tiver mais “convivialidade”. Nos parâmetros curriculares, a abordagem triangular permanece só com outros nomes. E uma das designações dos componentes – eu acho que na escola fundamental, e eu discordo dela – chama-se criação, ou fazer arte, ou ateliê, eu não me lembro muito bem, não importa essa designação; mas a outra é apreciação, e a terceira é reflexão. Eu acho que a reflexão é um processo mental e não uma ação, ela está incluída no fazer – quem faz reflete – está incluída na leitura, há uma reflexão quando você faz uma leitura da obra de arte e há uma reflexão na contextualização. Eu tenho certo receio que essa ênfase na reflexão seja um pouco resquício de uma estética tomista [referente aos pensamentos de São Tomás de Aquino], a idéia de que é preciso intelectualizar a arte, porque assim ela perde os seus efeitos sensoriais e seus efeitos sensuais mesmo, [esse] era o grande medo dos escolásticos [filosofia teológica da Idade Média], [medo] da sensualidade da arte; precisava passar pelo crivo da inteligência para diminuir esses efeitos de sensualidade da arte. Então tenho certo receio que isso aconteça.
Helena Katz: Você que está há tantos anos batalhando, Ana Mae, pela inclusão da arte-educação nos currículos do Brasil inteiro, a situação mudou muito nesses últimos 20 anos?
Ana Mae Barbosa: Para melhor.
Helena Katz: Para melhor, você está positiva. Mas que estratégias nós podemos ter agora com o ponto nevrálgico, o professor. Porque esse sempre foi o nosso problema, não é mesmo? Você tem alguma idéia agora com a nova LDB [lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394, de 1996], com os parâmetros curriculares aprovados etc, o que faremos?
Ana Mae Barbosa: A única solução e a única receita, Helena, é a atualização de todos professores. Quando Paulo Freire foi secretário de Educação e depois seguiu-se o Sérgio Portela, nós tivemos chance de atualizar todos os professores de arte da prefeitura, todos! Eu sei que isso é mais fácil no nível municipal do que no nível estadual. Mas então a Secretaria de Educação do Estado tem que encontrar maneiras facilitadoras para que todo o professor seja atualizado. Não é possível querer fazer uma renovação, uma revolução educacional, uma reforma educacional sem que todos os professores estejam conscientes de para quê é essa reforma, por que e por onde vai essa reforma. E serem preparados até para questionar essa reforma, seus princípios e organizar o seu currículo, o que eu recomendo é isso. Os parâmetros curriculares têm que ser estudados pelos professores, estes têm que organizar o seu currículo, até contra os parâmetros, mas eles têm que chegar a todos professores de uma maneira, aí sim, reflexiva.
Vera Bastazin: Ana, pensando um pouco nessa questão toda que você acabou de colocar sobre a formação do professor, eu gostaria de ouvi-la um pouco sobre essa relação contemporânea entre o registro verbal e a criação plástica, no sentido especificamente da palavra, não a palavra em oposição à imagem, mas a palavra como imagem. Porque nós acabamos de vivenciar todo um processo eleitoral, onde a palavra foi extremamente explorada, está sendo extremamente explorada nessa dimensão mais rica, mais polivalente. Você acha que os professores estão preparados no sentido de preparar também o educando para essa leitura, essa leitura mais plural, essa leitura mais aguçada, crítica. Seja na criança, seja no adolescente, mesmo no adulto, essa leitura ocorre, ela se faz? A arte tem um compromisso no treinamento dessa percepção?
Ruth Rocha: Eu queria dar uma palavrinha, porque é a respeito do mesmo problema. Nós estamos vendo que toda essa luta para fazer que o ensino da arte entre na escola, e nós temos o ensino de uma arte na escola, que é bastante intensa, que é o ensino do português, e seria o ensino da literatura. No entanto me parece que todo ensino de português que percorre todas as séries do ensino fundamental, do ensino médio é dado em um contexto quase que não artístico, com uma ênfase muito grande na gramática, ênfase muito grande na técnica e pouquíssima ênfase ao fazer artístico e, especialmente na apreciação. Apreciação, então, fica completamente esquecida. Então eu gostaria também de uma reflexão sobre ensino da literatura.
Vera Bastazin: Na realidade, o que a gente tem aí é o fazer artístico e o pensar artístico. Eu acho que em termos de educação, a gente não pode pensar nessas duas coisas [de forma] dissociada.
Ana Mae Barbosa: Dissociada. Daí eu ter me referido à abordagem triangular, em que nós pensamos [de forma] inter-relacionada: o fazer, a leitura da obra de arte, ou a leitura da imagem como você queira – porque não só se lê obra de arte, mas também se lê produtos da indústria cultural como publicidade etc – e a contextualização. Agora, você me pergunta se o professor está preparado? Ainda não está. Eu me lembro que quando eu comecei a discutir isso no Brasil, isso foi mais ou menos há uns 12 anos, eu comecei essa discussão sobre o lugar da imagem na escola, no ensino da arte, a pedido de um professor americano, Elliot Eisner, que estava fazendo um livro para a Unesco. Então ele pediu a algumas pessoas em alguns lugares do mundo para fazer a pesquisa sobre qual era a reação do professor acerca da introdução da imagem na sala de aula. Bom, encurtando a história, os três lugares em que eu pesquisei de início, o primeiro momento da pesquisa foi [em]: Recife, Florianópolis e Uberlândia. Em Recife e Florianópolis, eu tinha uma audiência, principalmente de professores da escola do primeiro grau, de 5ª a 8ª série. Olha, foi uma luta, uma luta tão violenta, eles ficaram tão irritados comigo, que uma [professora] me disse assim: “Você é uma traidora, você nunca disse isso nos seus livros, agora você esta querendo que a gente introduza a imagem na sala de aula, para discutir com o aluno? Nós não fomos preparados para isso”. Em Recife, eu fiquei tão zangada, porque no fim uma pessoa disse assim: “Vocês trazem essas pessoas de fora para dizer esses absurdos para gente!” Aí fiquei muito zangada, peguei minha bolsa, pus debaixo do braço e disse: “Olha, de fora não! Eu agüento preconceito quanto à nordestino em São Paulo”, [risos] sem nunca ter dito que não nasci no Recife, eu me considero pernambucana, nasci no Rio, mas me considero pernambucana, porque a minha cultura foi formada no Recife. Então saí da mesa, levantei e fui embora. Em Uberlândia a platéia era principalmente [de] professores universitários, e isso foi bem aceito. De lá para cá, [houve] uma mudança enorme. Recife tem estado na dianteira dos cursos de preparação para professor de arte, especialmente os da prefeitura.
Paulo Markun: Aliás, Ana Mae, tem aqui dois e-mails de Pernambuco, do Fernando Antônio de Azevedo e da Fátima Serrano Anderson, que diz que ficou muito feliz de saber da sua presença aqui e principalmente da sua frase de dizer que você é culturalmente pernambucana, quer dizer, você tem lá o seu fã-clube.[risos]
Sílvio Dworecki: Ana Mae, eu acho que fica um pouco complicado convencer as pessoas que a arte é necessária. Em um país onde há fome, onde mal se alfabetiza, a gente aparecer com essa história de que é necessária a arte. Eu não sei, eu acho que era bom [ter] uma lembrança de que a espécie humana sobreviveu nesse planeta também porque fez arte. Arte é uma condição da nossa sobrevivência. Então, daí a necessidade da arte na formação da criança como forma de conhecimento, com conteúdos, como você vem dizendo. Você até lembrou do Elliot Eisner. Eu estava vendo aqui ele pedindo a história da arte, com a crítica da arte, com a estética, tudo relacionado na escola. Mas na outra ponta, está sendo lembrado pelos meus colegas aqui, está a universidade que a gente conhece tão bem sucateada, sofrida, com pouca verba, com pouca pesquisa. É na universidade que deveríamos estar forjando os métodos de ensino que vão chegar às crianças e aos jovens, e refletindo sobre isso tudo. Então a minha pergunta é: como você vê o papel da universidade não com seu potencial, mas dentro da realidade dela sucateada e enfraquecida nesse momento?
Paulo Markun: É a pergunta também de Simone aqui de São Paulo, que telefonou para cá.
Vera Bastazin: Eu queria só também fazer uma colocação nesse sentido. Tem se criado, tem se construído teoria em termos metodológicos para ensino da arte no Brasil?
Ana Mae Barbosa: Esta é uma. A abordagem triangular é uma das teorias. A coisa é o seguinte: eu faço bem questão de dizer, que eu não criei essa abordagem, eu sistematizei para o caso do Brasil. Com a pós-modernidade, houve essa mudança de ensino exigindo na escola a educação artística, que é a educação do fazer, e a educação estética, que é a educação do entender, do compreender a arte. Esse grande guarda-chuva – educação artística e educação estética – foi traduzido em diferentes países por diferentes abordagens metodológicas. O Sílvio agora mesmo se referiu à abordagem americana que é chamada DBAE, ou Discipline-Based Art Education, ou arte-educação como disciplina.
Paulo Markun: Por que essa coisa de arte-educação? Não é mais fácil falar ensino de arte?
Ana Mae Barbosa: Eu também acho, também acho. Para mim tanto faz, não faço grandes distinções nisso não, entre arte e educação e ensino de arte. Há pessoas, Markun, que ficam mais à vontade falando de ensino de arte, porque acham que, como na escola, se fala em ensino da matemática, ensino do português, por que essa história de arte e educação? Por que não falar em ensino da arte? Só que em matemática já está se começando a falar de educação matemática, em vez de falar só de ensino da matemática. Outros acham que a arte-educação é um termo mais amplo, não é só ensino, é qualquer tipo de desenvolvimento da capacidade do indivíduo ver a arte ou fazer a arte mesmo informal: fora da escola, qualquer encontro que possibilite o indivíduo ser capaz de ler mais aprofundadamente uma obra de arte.
Paulo Markun: Mas vamos voltar lá para a universidade porque senão…
Ana Mae Barbosa: Vamos voltar às perguntas…
Vera Bastazin: Porque tem uma questão…
Ana Mae Barbosa: Eu tenho duas ainda. Uma sua [aponta para Vera Bastazin] que ficou do verbal – daqui a pouco eu chego na universidade, espera um pouquinho.
Sílvio Dworecki: Estou esperando.
Ana Mae Barbosa: A relação do verbal e do visual… Não sei se vocês se lembram de um vestibular que teve aí, acho que foi em 95, foi um escândalo tremendo, porque se colocou uma obra do Andy Warhol [(1928-1987, ícone da pop art norte-americana] e uma frase de um filósofo francês, que eu nem me lembro mais quem é, para se analisar. Novamente [houve] essa reação dos professores acharem quase impossível relacionar esses dois canais. A minha experiência não é essa. A minha experiência é que há um enorme salto de produção, tanto na linguagem verbal quanto na linguagem visual, quando você trabalha com projetos inter-relacionados. Eu, nesse meu último livro, Tópicos utópicos, falo do caso de uma menina, que hoje é uma artista, Betty Leirner, está até com uma exposição agora aqui no MIS [Museu da Imagem e do Som do estado de São Paulo], eu tenho impressão. Desde seus doze anos de idade, ela trabalhava verbal e visual, inclusive recortando imagens de revista. E era curioso que naquela época nós estávamos totalmente embebidos no modernismo, o medo enorme de que a criança usasse imagem pronta; e a idéia era que arte vem de dentro. Tínhamos um tremendo medo da cópia, qualquer aproximação com a imagem pronta podia deflagrar a cópia! Era uma espécie de crença na virgindade expressiva da criança. E a Betty insistia em recortar a figura e usar a figura e as palavras, enquanto a gente dizia: “Não, use só a revista para tirar cor”. Aí cortávamos a cabeça, deixávamos só a roupa, que era para ver se ela usava só a cor. E ela insistia. Tanto, que ela foi uma das primeiras professoras de ensino pós-moderno de arte que eu tive. Porque ela insistia mais, apresentava produtos tão inventivos e tão críticos da sociedade em que ela vivia, articulando verbal com o visual, que me convenceu.
Vera Bastazin: Isso exige também uma alfabetização visual.
Ana Mae Barbosa: Sim.
Vera Bastazin: É todo um preparo do professor, e nessa passagem metodológica que envolve uma metodologia e um aprendizado em termos da alfabetização visual que é diferente daquele lidar com as palavras.
Ana Mae Barbosa: Sim, exatamente. Ver a palavra como imagem e ver a imagem como uma informação também.
Paulo Markun: E a universidade? [risos]
Ana Mae Barbosa: E a universidade? Vamos chegar à universidade que é o que dói mais para mim, é o que dói mais… Eu, recentemente, estive em uma universidade que não vou dizer qual é, porque ela não é pior do que nenhuma outra, ela está só refletindo o que é a universidade hoje. Para um curso de pós-graduação em arte-educação ou ensino da arte, Markun, como você quiser. Um sacrifício assim tremendo desses professores, inclusive para se atualizar. Universidade não tem condições! [fala com muita ênfase] Então eram trinta e dois professores que vinham para a aula correndo depois do seu trabalho, começavam a aula às sete horas e iam até as dez, sem jantar. E não tinha na universidade, à noite, nenhum lugar para tomar um cafezinho. Aí descobriram um pipoqueiro, essa história é engraçada, porque descobriram um pipoqueiro e começaram a chamar o pipoqueiro para ir no intervalo da aula. No segundo dia, eu demorei a dar intervalo; o que fez o pipoqueiro? Me mandou de presente um saco de pipoca para me avisar que estava na hora do intervalo. Então, todo dia, quando chegavam as nove horas mais ou menos, vinha alguém com um saco de pipoca que o pipoqueiro mandou, porque estava na hora do…
Paulo Markun: Dos comerciais.
Ana Mae Barbosa: Dos comerciais. [risos] Ele queria ir para casa logo, então queria que eu fizesse a pausa. Não tinha um projetor de slide que pudesse… Nós ficávamos pondo slide por slide… E teve um dia que tiramos, inclusive, aquela tampa do slide, e segurava com a mão, na frente da lente, o slide, para poder [fazer a projeção]… [Era] Muito difícil, um esforço tremendo dos professores que organizaram, um esforço tremendo dos alunos para irem à aula. Mas não há condições, as universidades estão sem condições materiais para desenvolver o ensino.
Paulo Markun: Eu vou começar um bloco aí com duas perguntas de telespectadores e aproveitando a carona aí para fazer uma provocação. As perguntas são até uma demonstração de como esse tipo de assunto é polêmico. O Martine Bagine, aqui de São Paulo, diz: “como é que a senhora acredita que as novas mídias como a internet, possam ajudar na divulgação das artes?” Já Gonçalves aqui também do Tatuapé, em São Paulo diz: “que a arte, como manifestação espontânea da alma humana deveria desenvolver o senso crítico”. E ele acha que cada vez mais o homem se aproxima da tecnologia, como através da internet, e se distancia de si mesmo. Então são duas visões do mesmo problema. E eu acrescentaria uma provocação, realmente, daquelas maldosas. Quando eu estava vindo para cá, pela rua Teodoro Sampaio, que fica no bairro de Pinheiros, eu cruzei com uma porção de manifestações de arte; não sei se de arte educada ou de educação ou alguma manifestação de civilidade, que são os grafites. Na cidade de São Paulo e nas grandes cidades brasileiras, há uma manifestação que… eu não sei se não é preconceito nosso a gente achar… para mim não é. Mas eu não sei se é uma visão preconceituosa dizer que aquilo não é arte, se a gente vai para a Bienal, por exemplo, e se depara com coisas que fica difícil distinguir entre uma coisa e outra. Então são duas colocações.
Ana Mae Barbosa: São três.
Paulo Markun: Uma quer saber se a internet ajuda, o outro acha que atrapalha.
Ana Mae Barbosa: Eu acho que a internet vem, sim, democratizar o acesso à imagem. É muito difícil o acesso a livros de arte. Quem que faz livro de arte? Fazem livro de artes, principalmente neste país, as empresas, por exemplo, no fim de ano. Que empresas são essas? Bancos etc. Quem de nós, professor, é um cliente de banco tão bom para ganhar um livro desses no fim do ano?
Paulo Markun: Isso fica bem naquela casa de madame debaixo do abajur.
Ana Mae Barbosa: Então veja bem. [Com] a internet, pelo menos, você tem o acesso à imagem; você vai poder ver a imagem, fazer uma leitura dessa imagem, imprimir essa imagem, se você quiser. Agora, o segundo leitor falou algo muito importante. É preciso tampar a internet, como para viver no mundo é preciso o desenvolvimento da capacidade crítica. E essa leitura de obra de arte que eu estou falando é o afinamento dessa capacidade crítica, que vai, então, tentar discutir e chegar a conclusões sobre que grafite é obra de arte e que grafite não é obra de arte. O que está na Bienal que é bom, o que está na Bienal que é dispensável, que não tem significação nenhuma, que é apenas uma manifestação de um artista em um espaço de arte. É para isso que a gente fala tanto em leitura de obra de  arte, é para desenvolver a capacidade crítica. Acho que há duas pedagogias hoje dominantes no mundo. Uma é a pedagogia crítica, a outra é a pedagogia cultural, que se inter-relacionam. E ambas tiveram uma influência enorme de Paulo Freire.
Lígia Cortez: A gente está falando bastante sobre ver obra de arte. Eu gostaria que a gente falasse um pouquinho sobre o fazer. E acho que o professor tem muitas falhas hoje, a gente sente isso. Mas têm algumas que são muito importantes, que não é só a falha técnica na sua formação, mas a gente precisa que o professor tenha um conhecimento de si mesmo e de suas limitações para poder desenvolver o outro; que ele tenha também uma preocupação ética e de muito respeito em relação ao aluno, ao adolescente ou, às vezes, até ao adulto para estar dando aula. Eu gostaria que você comentasse um pouco isso. E a gente diverge um pouquinho em uma coisa que eu vi, que eu acho que, muitas vezes, o artista é um excelente professor na medida em que ele está acostumado a se expor com sua obra de arte, seja uma peça de teatro, seja um desenho, seja um espetáculo de balé. Ele está acostumado a vivenciar essa insegurança, esse nervosismo, “vou ser aceito, gostam de mim ou não”. Quando ele tem essa experiência, pode, talvez, compreender melhor uma insegurança de um aluno, ou as defesas, enfim, saber fazer com que ele possa progredir um pouco mais na sua arte. Você concorda?
Ana Mae Barbosa: No que a gente está discordando? Não estamos discordando não, não estamos…
Lígia Cortez: É que hoje à tarde, eu vi em um programa em que você…
Ana Mae Barbosa: Eu acho que há artistas que podem ser excelentes professores, e há, inclusive, artistas na universidade que não o são, porque são tão centrados em si mesmos, que eles procuram ensinar eles próprios aos alunos. Isto é, o aluno até já aprende o macete. Para um professor X, ele constrói um trabalho X, porque parece com o que o professor costuma fazer, e o professor só aceita aquilo…
Lígia Cortez: Vai gostar daquilo.
Ana Mae Barbosa: Só gosta daquilo que se assemelha ao que ele costuma fazer, o professor-espelho. E há excelentes professores, eu acho que há também artistas que podem atuar no ensino fundamental, eu não discordo de você, eu acho que é possível.
Dario Vizeu: Pegando essa questão do artista e do professor, minha experiência – e eu cheguei exatamente no segundo grau em 71. Então de repente chegaram na minha escola vários profissionais, eram todos artistas, e começaram a dar  [a matéria] educação artística. E eu achei aquela experiência particularmente interessante, e hoje eu até acho, posteriormente, com minha formação como arquiteto, que havia de qualquer maneira, eu acredito o seguinte, gostaria de saber sua opinião: mesmo dentro de uma escola onde você tem o professor que é formado para ensinar arte, o convívio com o artista, eu considero muito importante. Quer dizer, a aproximação, a escola, a excursão até o ambiente ou até o ateliê, ou o convite ao profissional para que ele vá [à escola], por quê? Porque eu acho que você está ali na sala de aula com suas questões ajudando algum […] e tal, e o professor está voltado para aquela experiência ali que é lidar com os alunos etc e tal. A experiência do artista que é o momento em que ele está nessa exposição, assumindo riscos e gerando novas propostas, eu considero uma experiência absolutamente fundamental, porque o aluno, diante daquela pessoa, com aquele que tem como uma atribuição fundamental, assim como eu poderia até dizer que a visita de um escritor é insubstituível. Quer dizer, você está lidando ali, tem sua aula de gramática, tem sua aula disso, de língua portuguesa, mas quando chega um escritor, é uma festa dentro da escola…
Paulo Markun: Ruth Rocha que o diga! [risos]
Dario Vizeu: Ruth Rocha que o diga, não é verdade? Assim como o artista. Essa aproximação, eu diria, é absolutamente indispensável.
Ana Mae Barbosa: Concordo plenamente com você, eu acho indispensável a aproximação com os fazedores, com aqueles que estão no métier [palavra francesa que significa profissão, ramo]. Inclusive porque há o perigo, às vezes, do professor, chamado de professor de educação artística – eu não gosto dessa expressão porque ela ficou muito marcada com o ensino polivalente etc – mas digamos o professor de educação, o professor de arte. O professor de arte na escola, às vezes, corre o risco de estar trabalhando como arte, não a arte do mundo real, mas a arte, uma equivalência chamada arte escolar. Acho que em toda área tem isso, a estereotipia da sementinha, vamos lá na dança; as estereotipias de colar macarrão em papel e etc., isso para mim é arte escolar, é a que só existe na escola, não existe no mundo profissional. Então acho que [se] aproximar do mundo profissional das artes vai trazer a dimensão mais aproximada do humano nas artes, concordo com você.
Helena Katz: Ana, você que já escreveu tanto, como foi alguém escrever uma dissertação de mestrado na Federal de Goiás sobre Ana Mae Barbosa, que tal?
Ana Mae Barbosa: Você sabe que eu nunca li, morro de medo! [risos]
Helena Katz: Eu queria saber se você gostou? Se ela conseguiu?
Ana Mae Barbosa: Eu tenho uns problemas muito sérios. Primeiro, eu não gosto de ler aquilo que eu escrevi; publicou, morreu. E a outra coisa é ler o que fazem sobre mim, eu tenho assim uma resistência muito grande. Então a moça me mandou a tese, e tal… e eu cometi uma coisa, cometi um pecado emocional. Eu fiz uma pesquisa sobre as teses sobre arte-educação nas universidades brasileiras, coletei essas teses e depois as doei para a escolinha de arte do Recife, onde nós arte-educadores temos um sonho de criar uma espécie de arquivo de arte-educação do Brasil. Mas essa dela eu não mandei, foi engraçadíssimo! Eu guardei comigo a tese, mas eu nunca li, é um problema… Dizem os meus amigos que isso é uma característica mais feminina…
Paulo Markun: Freud explica!
Ana Mae Barbosa: …não ler o que se escreve sobre você e não ler o que você já escreveu.
Paulo Markun: Ana Mae, vou pegar uma carona nisso aqui, para citar a pergunta da [artista plástica] Maria Bonomi, acho que tem um ponto de contato com isso. Ela diz o seguinte: “Ao falarmos do ensino de arte como necessidade para aprimorar o ser humano, para criar apreciadores mesmo dos valores, do meio ambiente etc.” Ela pergunta: “Não é chocante ver que os que ocupam, na mídia, os cargos de críticos de arte, ou mesmo de comunicadores culturais, na sua maioria” – ela diz e reconhece que há exceções – “desconhecem a história da arte, os conhecimentos básicos da visualidade e da cultura e, no entanto, são especialistas no ramo. Como remediar isso?”, ela pergunta.
Ana Mae Barbosa: Eu acho que só as próximas gerações vão remediar isso, Maria…

Paulo Markun: Não lendo os críticos!

Ana Mae Barbosa: Agora tem uma coisa pior ainda, que é o preconceito que, em geral, o crítico de arte, o historiador da arte tem contra o ensino da arte, tem contra a arte-educação; vão ser os últimos a serem vencidos. Eu estou vendo que os educadores começam a achar que essa força renovadora, que é necessária na escola, [em que] estão todos empenhados em modificar a educação, em realmente fazer da educação um processo de formação dos alunos, das futuras gerações, e começam a valorizar mais a importância da arte. A importância da arte como meio de pensar além do pensar verbal, uma complementação do pensar verbal. Os educadores começam a pensar assim, enquanto os historiadores e críticos têm um preconceito enorme, enorme. Na época em que eu dirigi o MAC [Museu de Arte Contemporânea], o maior preconceito não era sequer eu ser nordestina; o maior preconceito era eu ser arte-educadora. Foi enorme esse preconceito que eu encontrei pela frente. Não adiantava nada, eu construí museu, eu fiz exposições, fiz curadorias de Barbara Kruger [artista norte-americana], de [exposição de] Christo, trouxe exposições, artistas pop-americanos, como…
Paulo Markun: Nem assim.
Ana Mae Barbosa: Larry Rivers, Frank Stella [artistas norte-americanos] fizeram obras especialmente para o museu. Nem assim! Eu era sempre vista como aquela que só fazia pela arte-educação. Então, esse preconceito é terrível. Vou só contar uma historinha de terror.
Ruth Rocha: Como se o museu não fosse arte-educação.
Ana Mae Barbosa: Exatamente. Mas aí dizer o museu não é educação, museu não é escola, museu não é educação, isso eu ouvi várias vezes…
[?]: Mas nesse sentido…
Ana Mae Barbosa: Deixa eu só contar uma historinha de terror, que essa é terrível. [risos] O ano passado, doze historiadores da arte, coordenadores dos cursos de pós-graduação de artes visuais do Brasil, se reuniram no Rio de Janeiro e propuseram ao CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e à Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], a criação de uma grande área de arte, excluindo arte-educação dessa área. Pergunte por quê? Porque difícil dizer quando um projeto é de arte ou quando um projeto é de educação. Gente, se a gente não tem tolerância à ambigüidade interdisciplinar, o que é que vai ser da universidade brasileira? Porque a salvação da aprendizagem universitária, para mim, está na interdisciplinidade.
Sílvio Dworecki: Ana Mae, nós tínhamos dois gêneros na pintura: um, a natureza morta; o outro, a paisagem. Hoje a gente fala em design e fala em meio ambiente, só que o design e o meio ambiente estão sucumbidos, dentro de um espírito de consumo onde o tempo da contemplação, o tempo da atenção, o tempo da percepção estética está consumido em um ir e vir muito apertado do cidadão com um tempo muito escasso. Eu lhe pergunto: como fica o aluno de arte, como fica o professor de arte com essas duas questões que hoje se chamam design e meio ambiente?
Ana Mae Barbosa: Olha, eu acho que com o estudante de arte em relação ao design, eu não vejo nenhum problema, vejo no professor de design, quando ele simplesmente pensa que design só existe em produtos italianos e dinamarqueses. Design existe aqui na minha roupa, na sua roupa etc. Quando você pensa design como o tratamento do objeto do cotidiano, mas não do cotidiano só do rico, do cotidiano do pobre. Há design no objeto que o pobre usa na sua cozinha. Que design é esse? Vamos investigar isso, aí sim. Agora, quanto ao problema da paisagem… A paisagem não é mais apenas… A arte mudou, paisagem não é só o bosque romântico e a casinha cercada de flores. Você tem como um trabalho de paisagem magnífico o da Judy Pfaff, americana que está expondo na Bienal. Ela representa uma paisagem, uma paisagem conturbada pelo artefato, pela morte da natureza, mas, ao mesmo tempo, ela nos leva a subir uma escada de três metros e daí nos comunicarmos diretamente, através do vidro da janela, com a natureza ao nosso redor. Para mim é uma das maiores paisagens que eu vi ultimamente, foi o trabalho da Judy Pfaff.
Vera Bastazin: Eu queria retomar, Ana… Você tocou agora na questão da Bienal, e o Markun colocou agora há pouco a questão do grafite, e você falou da importância disso, inclusive para o discernimento do fruidor. É a questão valorativa da arte. O que presta? O que é bom? O que não é bom? Essa tendência atual da Bienal em tematizar agora a questão da antropofagia e de levar também para a Bienal grandes clássicos – há um pavimento todo dedicado aos grandes clássicos – e depois essa arte mais contemporânea, mais agressiva, de maior ruptura. Isto também seria uma forma de contribuição para a formação do fruidor da arte, para o discernimento, para a questão do valor da arte? Quer dizer, ele vai aprender, através da experiência da Bienal, a valorar a arte, a ver, sentir as diferenças, conviver naquele espaço com as grandes diferenças, dentro mesmo do moderno.
Ana Mae Barbosa: Mas é claro! Eu acho que a Bienal é uma oportunidade única de ter contato com o trabalho de artistas de todo o mundo. É interessante também e já é uma iniciação crítica ver as diferenças curatoriais; essa pulverização de curadorias, eu acho muito positiva, inclusive, simbolicamente, é interessante. O curador-chefe que sempre foi o dono e o senhor abdicar do seu poder e dividi-lo com outros curadores. Acho isso muito interessante. O que é interessante notar, entretanto, acerca da Bienal é que, com essa linha curatorial, eles estão abandonando, ou estão dando um segundo plano, inclusive do ponto de vista de espaço, em segunda categoria, às representações nacionais. E esta Bienal, por exemplo, em alguns casos, a representação que o país escolheu para mandar é melhor do que a representação do curador que foi escolhido pela Bienal. Um caso [ao qual] volto é o caso da Judy Pfaff. O trabalho dela é muito superior ao trabalho dos americanos que veio abrigado por uma curadoria. O da Argentina também, Nicola Constantino, é um trabalho extraordinário em que ela discute o problema da roupa e a pele. A roupa torna-se a pele da pele. Eu acho um trabalho tão bom quanto o de alguns latino-americanos que estiveram dentro da curadoria. Mas é colocado lá, jogado de lado, naquele primeiro andar, que virou quase que maltratado, até do ponto de vista do espaço, do tratamento do espaço. E toda a atenção é dada ao espaço. Agora eu só quero continuar. Eu acho a Bienal uma lição de arte. Acho a Bienal uma chance fantástica de amadurecer a capacidade crítica. E este ano houve um reforço em educação. O discurso do Paulo Herkenhoff [curador e crítico de arte, foi diretor do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro] acerca de educação foi o discurso mais convincente que eu já vi de qualquer curador. Tinha só um problema e que me decepcionou muito! Quando eu cheguei na Bienal, estavam os monitores que estudaram dois meses e meio, estavam com uma camiseta com o título de “Tira dúvidas”. Reduzir o monitor da Bienal a um tira dúvidas é desmentir todo o discurso convincente do Paulo Herkenhoff. É você pensar que em educação, há uma grande verdade ali, e eles estão ali para tirar as dúvidas para a gente chegar à grande verdade, é o que Paulo Freire criticava chamando de educação bancária. Então, eu acho que foi realmente muito infeliz esse nome dado aos monitores.
Paulo Markun: Deve ter sido algum publicitário? [risos]
Ana Mae Barbosa: Vamos conversar com os publicitários sobre arte-educação, eu acho que precisa. Se foi algum publicitário, precisamos conversar.
Lígia Cortez: Agora, por que quando a gente fala em arte-educação, normalmente, se enfatiza muito artes plásticas? É falta de professores em outras áreas, é uma lacuna? O que acontece?
Ana Maria Sanchez: Eu queria uma caroninha.
Ana Mae Barbosa: Perdão, é um vício meu, tá!
Lígia Cortez: Mas não é só seu, não é…
Ana Mae Barbosa: Eu vou dizer por quê.
Lígia Cortez: Diga!
Ana Maria Sanchez: Ana, eu queria uma carona, porque eu acho que a maior parte dos telespectadores não deve saber isso também, por isso estou colocando a questão. Qual é a formação do professor que ensina arte na escola?
Ana Mae Barbosa: Atualmente…
Paulo Markun: E se é possível ela ser concretizada, porque é fantástica. O cara que conseguir fazer tudo aquilo é super-homem.
Ana Mae Barbosa: Nós vamos chegar aí. Como é que está agora e o que tem que mudar já? Eu acho que as universidades têm que começar já a discutir novos currículos, acabar com esse currículo mínimo determinado por disciplinas, e dar guias curriculares. A universidade tem que ter linhas curriculares, mas não determinada por disciplinas, porque é preciso, inclusive, mudar os currículos de acordo com a região. Mas voltando ao que vocês duas falaram. Primeiro eu acho que é vício meu, e vou lhe dizer por quê. Vício por quê? Eu combati tanto essa polivalência, que você brincou aí dizendo que é preciso ser Leonardo da Vinci, para…
Paulo Markun: No mínimo.
Ana Mae Barbosa: … ser um professor polivalente. O que houve foi o seguinte. Como é que está a formação ainda? Nós estamos ainda com os resquícios… Você imagina que o currículo para a formação de professor de arte ainda é um currículo determinado em 1973, gente! Precisa mudar e já. O currículo era o seguinte. Criou-se um curso de licenciatura curta, de dois anos, para formar um professor que deveria ensinar no ensino de 5ª à 8ª série e no segundo grau: música, teatro, artes plásticas, dança e desenho geométrico… [risos]
[?]: Sapateado.
Ana Mae Barbosa: Imagine um aluno de 18 anos ter em dois anos uma formação para ensinar tudo isso, para ser um produtor, porque professor para mim é um produtor. É um absurdo epistemológico, é impossível! Muitas universidades reagiram a isso. E hoje o que se tem, em geral, nas maiores universidades, as federais – quase todas já não têm mais essa licenciatura curta – é a licenciatura plena de artes plásticas, de artes cênicas e de música. Cada um desses cursos, entretanto, tem aportes interdisciplinares. Por exemplo, o aluno de licenciatura em artes plásticas deve conhecer algo de teatro e algo de música, e os outros itens, os de teatro etc. Na realidade isso não se faz muito bem. Eu acho que tem que se enfatizar isso, a interdisciplinaridade. Eu acho que no ensino tem que haver um aprofundamento vertical na linguagem escolhida – seja ela artes plásticas, teatro ou música – e tem que haver um conhecimento, eu diria, horizontal, das outras áreas, inclusive para você saber como é que vai trabalhar. Eu [que sou] de artes plásticas, como vou trabalhar com o professor de teatro? É qualquer professor de teatro que vai se coadunar com minha metodologia e os meus princípios conceituais de ensino da arte? Não é?
Paulo Markun: E não é mais barato ter escola, quer dizer, ter aula de artes plásticas, porque para a dança, você precisa uma porção de coisa que a Helena Katz sabe muito bem. Não vou nem falar de sapatilha, mas…
Helena Katz: Um espaço.
Paulo Markun: Um espaço etc e tal. Para o teatro idem; para a música, no mínimo, você precisa ter instrumento. Nas artes plásticas, você chama um professor, dá um pedaço de papel, e supõe-se que ele, com isso, resolva o problema. Não tem um pouco esse…
Ana Mae Barbosa: Markun, por que é que realmente domina – apesar da suposta polivalência – domina o ensino, supostamente das artes plásticas? Porque também não é bem isso.
Paulo Markun: Também não é bem assim.
Ana Mae Barbosa: Dar o lápis e papel e deixar desenhar, e [é nessa] a hora que o professor vai descansar e conversar com o colega da outra classe. E realmente [isso] tem dominado. Na realidade essa polivalência não existe; domina o visual, porque o visual é mais barato, não exige sala ambiente etc. Mas tem outras razões, eu acho que o teatro é o que é mais relegado na escola. Bom, dança também, né?
Helena Katz: Dança, igual.
[?]: Tem uma dificuldade.
Ana Mae Barbosa: Mas dança tem uma contrapartida. Para uma determinada classe, da classe média para cima, você tem uma multidão de escolas de dança particulares, que o aluno vai depois da aula – aluna, porque em geral é mulher que faz dança, há um enorme preconceito. Agora, no teatro, para começar, não tem muitos espaços para um adolescente que queira fazer teatro, começar a trabalhar e até se profissionalizar. Por isso eu acho o trabalho da Célia Helena [Teatro Escola Célia Helena, nome que homenageia a atriz, falecida em 1997, que era mãe de uma das entrevistadoras, a também atriz Lígia Cortez, filha de outro grande ator, Raul Cortez], esse trabalho de vocês, da Célia Helena, admirável. Há muitos que eu sou admiradora, já fui visitar várias vezes. Agora, nas artes plásticas, Markun, também não tem o lugar onde o adolescente que não queira fazer universidade, porque você pode optar, gente! Por que nesse país todo mundo tem que fazer universidade? Eu só vejo uma razão: para quando for preso, ter prisão especial. [risos]
Ana Mae Barbosa: É só essa razão.
Helena Katz: Quero aproveitar e fazer uma correção. Isso que você colocou que há uma oportunidade para a classe média fazer dança, de maneira alguma, isso resolve o problema, que é o problema de arte-educação, dança na arte-educação, de maneira alguma.
Ana Mae Barbosa: Não resolve. Claro.
Helena Katz: Principalmente pela metodologia triangular, ou seja,…
Ana Mae Barbosa: É, não resolve.
Helena Katz: O fruidor está absolutamente desabrigado disso, a tal ponto que algumas companhias de dança, sozinhas, começaram a fazer o papel, como o Ballet Stadium que faz um trabalho admirável que é o projeto escola, de fazer o fruidor de dança, pegar, levar para o teatro para ver o espetáculo, com discussões etc. E várias outras companhias – Cisne Negro fez isso, Grupo Corpo fez isso – fazem um pouco esse trabalho. Exatamente porque a dança está completamente desabrigada, falta o profissional e falta a discussão da grade que interessa.
Ana Mae Barbosa: Isso é verdade. Agora, [já que] você está falando em dança, eu vou aproveitar aqui e lembrar essa magnífica exposição que está abrindo agora no Sesc Vila Mariana, sobre o Balé do IV Centenário, isso vai dar muita discussão, não é?
Ana Maria Sanchez: Uma das coisas mais importantes já feitas com dança no país.
Paulo Markun: E estamos chegando no V Centenário daqui a pouco e…
Ana Mae Barbosa: Mas foi o que deflagrou realmente um desenvolvimento da dança no país; e é interdisciplinar, porque os artistas que fizeram a cenografia foram os artistas mais famosos da época…
Paulo Markun: Exatamente.
Ana Mae Barbosa: Di Cavalcante, Noêmia Mourão, [Cândido] Portinari, Flávio de Carvalho e a Irene Ruchti, que está viva, é a única que está viva de todo grupo.
Sílvio Dworecki: Agora existe um contraponto, Ana Mae, porque você poderia perfeitamente aproveitar a grande massa de artistas de todas as áreas, e através de uma formação, ou de uma linha de formação básica sobre pedagogia, sobre ensino levá-los à escola. Existe uma tradição de grandes artistas que foram professores e não uma incompatibilidade entre os dois ofícios, como é visto. Mas, na medida em que a universidade não faz isso, na medida em que a escola está depauperada, a minha pergunta é a seguinte: a metodologia triangular…
Ana Mae Barbosa: Abordagem, metodologia não.
Sílvio Dworecki: É, você, desculpe, tá bom!
Ana Mae Barbosa: Eu já corrigi.
Sílvio Dworecki: A abordagem triangular não leva, nesse quadro depauperado do exercício do ensino da arte, a uma idealização da obra de arte que é apresentada? Em vez de ela ser um estímulo, ela não passa a ser algo que se torna modelo?
Ana Mae Barbosa: Não! Porque essa leitura da obra de arte pode ser feita como você [apontando para Dario Vizeu] se referiu a ela, que é um trabalho de levar ao artista, de analisar a obra junto com o artista, discutir com o artista a obra do artista. Eu, aliás, acho muito mais interessante trazer o artista com sua obra para a sala de aula, isso seria o ideal. Como há grandes dificuldades de contatos de escola com o mundo que a cerca – e eu acho que precisa começar a incentivar esse contato com os profissionais – mas como há dificuldades, então tem-se usado a reprodução. Mas eu acho que o ideal é isto: levar a Bienal, levar a exposição sobre o Balé do IV Centenário no Sesc, ver que tipo de roupa produziu esses artistas para a cenografia dos balés etc, eu acho que isso é o ideal.

Paulo Markun: Ana Mae, em um dos seus livros, há uma menção – não creio que é exatamente sua – sobre uma imagem que continuava recorrente no trabalho das crianças, que é aquela imagem célebre do canibal cozinhando um sujeito de chapéu, um colonizador inglês. Não sei se isso confere.

Ana Mae Barbosa: Não, não é no meu livro, não, eu acho.
Paulo Markun: Não?
Ana Mae Barbosa: Não.
Paulo Markun: Acho que sim, em que…
Ana Mae Barbosa: Não me lembro mais do que escrevi, então… não me lembro disso…
Paulo Markun: Você deve ter aquela história de não ler o que [escreve]…, mas enfim. Vou reformular a pergunta. Tenho a impressão que é, mas… Hoje mesmo no programa da TV Cultura, que antecedeu aqui o Jornal da Cultura, havia uma menina novinha mostrando um desenho que ela fez de uma casa e, muito provavelmente, ou com quase toda certeza, a casa que ela desenhou não tem nada a ver com a casa em que ela viveu. É aquela casa que a gente desenhava, que os pais da gente desenhavam, uma casa praticamente rural em que havia quatro paredes, um telhadinho, uma chaminé, um laguinho. A sobrevivência dessas imagens tem alguma coisa a ver com o trabalho da arte nas escolas?
Ana Mae Barbosa: Tem, porque tem que ver com o mau trabalho da arte na escola.
Paulo Markun: Com o mau trabalho?
Ana Mae Barbosa: Pelo seguinte, porque há uma evolução da expressão plástica e gráfica da criança, que vai da garatuja ao pré-esquema – primeiro ela só garatuja, depois ela joga objetos soltos na folha do papel – e depois ela começa a ter noção de espaço. A primeira noção de espaço que a criança tem é aquilo que eu chamaria a fase convencional, a fase medíocre da criança, que põe a linha de base, põe uma casa, significa que tudo está plantado na terra, que ela está… A visão espacial dela é que tudo corre em relação à terra, e que o céu está lá em cima, não é isso? Se você não estimula, não desenvolve a capacidade de ver da criança, ela vai ficar nessa fase, tanto é que o adulto que não tem o hábito de desenhar, que não tem aproximação com a arte, se você [lhe] der um lápis e um papel e disser “desenhe alguma coisa”, ele vai fazer isso. É a última fase a que a criança chega se desenvolvendo autonomamente; a partir daí, existem os talentos! Há crianças muito talentosas que ninguém segura, graças a Deus!
Paulo Markun: Mas o desenvolvimento da arte não foi feito quase todo ele na base dessas crianças talentosas e sem um investimento como o que existe, por exemplo, nas escolinhas de futebol. O Brasil tem ótimos jogadores de futebol, primeiro porque tem campo de futebol em tudo quanto é esquina – hoje, nas grandes cidades, piorou um pouco. E segundo [por]que tem escolinha de futebol em qualquer canto.
Ana Mae Barbosa: Exatamente. Inclusive os artistas da minha geração sobreviveram à escola, muitas vezes, com o auxílio da família, porque a família achava importante, o […] é um caso. Ele tinha uma tia que o estimulava de tal maneira que guardou os desenhos dele, é um dos poucos artistas do século XIX, que a gente tem desenho dele desde cinco anos de idade. Havia esse lado do estímulo familiar também. Mas já me perdi do que você tinha me perguntado.
Paulo Markun: A questão dessa sobrevivência das imagens?
Ana Mae Barbosa: Bom, então esta imagem é uma imagem genérica que significa a primeira conquista de noção de espaço da criança. O que está se estudando muito, Markun, agora, são as fases de apreensão da obra de arte também, de apreensão da imagem. Como começa? Qual a primeira abordagem da criança [em relação] à obra de arte? Muita gente começa a mostrar o abstrato porque ela desenha só garatuja. Essa fase não é bem assim. No primeiro momento, o primeiro contato da criança com a obra de arte ou com a imagem é através da narratividade, ela narra qualquer coisa acerca daquilo; ela começa a contar uma história, ver uma imagem. Então quanto mais rica em diferentes possibilidades de narrativa for a imagem, melhor para um criança de quatro, cinco anos, seis anos. Depois ela chega à fase do realismo esquemático, em que ela considera bom um desenho ou uma pintura onde estejam traçados, não importa se realisticamente ou não, uma mão teria que ter os cincos dedos. Agora não importa se tem unha se tem nada, tem que estar marcado que são cincos dedos. Aí ela passa para o realismo fotográfico, aí ela exige que sim, que a mão seja aquilo que ela chama bem desenhado, ou que seja uma reprodução da realidade, para chegar depois ao realismo metafórico, onde ela começa a aferir significados a uma bolsa desenhada, aquela bolsa vai significar para ela vida, vai significar para ela o tumulto da sociedade, vai significar para ela a escola, a instituição e coisas tais.
Sílvio Dworecki: E nós temos um grande rompimento em seguida que é o período de alfabetização, em que a criança tem uma tendência – internacionalmente se reconhece – a abandonar a arte. Mas a gente vê que essa tendência é muito mais porque a arte começa a desaparecer da escola, fruto desse preconceito. Será que a saída não seria uma nova visão da arte? Uma arte como uma atitude de atenção cotidiana e um pouco mais distante de um produto artístico?
Ana Mae Barbosa: Não, eu acho que tem que enfrentar o produto, senão a gente pode cair naquele slogan modernista, do ensino modernista: “O que importa é o processo e não o produto”. Enquanto não tiver eletroencefalograma do processo criador, o que vai me indicar é o produto e um produto que deflagre outros processos.
[?]: Que seja compartilhado?
Ana Mae Barbosa: Compartilhado.
Sílvio Dworecki: Eu não me refiro à ausência de produto, eu quero me referir à atitude de atenção e criação cotidiana como uma possibilidade artística para qualquer cidadão, e não uma coisa restrita ao mundo da arte, [é] essa aprendizagem artística como algo para todos.
Ana Mae Barbosa: Eu diria a você que seria uma aprendizagem da imagem no caso das artes visuais, porque eu não acho que é só a imagem da arte consagrada que deve ser analisada. Eu acho que a imagem da publicidade, a imagem da televisão também, entendeu? Quando nós tivermos críticos de televisão, quando os consumidores forem críticos da televisão, ela vai melhorar. A tendência é essa. Nos países onde há uma ênfase na crítica na televisão, a televisão tende a se aprimorar também. Eu acho que é muito importante enfocar o produto, a análise do produto, eu vou dizer por quê. Fala-se muito que a arte é importante para o desenvolvimento da criatividade, que o fazer arte é importante. Esse é um slogan modernista – desenvolver a criatividade – por isso levamos nossos alunos a fazerem arte. Quantos desses nossos alunos da escola pública – voltando ao que a Ana falou – poderão ter chance de continuar se desenvolvendo criadoramente ao longo da sua vida? Eles vão ser bancários, eles vão trabalhar em ofícios extremamente repetitivos. Para se desenvolver fazendo arte, você precisa de espaço, precisa de tempo e etc. Ver obra de arte, ver a imagem, analisar a imagem, analisar um filme que você viu no cinema, também desenvolve sua capacidade criadora. E esta sim, este pode ser um desenvolvimento continuado ao longo da vida. É muito mais fácil você ao sair do trabalho ir olhar uma exposição do que você ir para casa encontrar espaço e material, que é caro, para trabalhar em arte, no caso das artes visuais.
Paulo Markun: Ana Mae, nosso tempo está chegando ao final, há uma pergunta que na verdade é um apelo de uma telespectadora, que eu queria emendar com uma observação que veio pela internet. Começo pela observação da internet. Você coloca a arte-educação, a educação artística como a peça fundamental na formação da cidadania. Como o Brasil tem pouco disso, que prejuízo isso causa na cidadania? E o apelo,  que tem a ver com isso, é de uma diretora de uma escola de arte e criação no bairro da Penha, a escola se chama Viveca. Eles dizem que fazem ateliê com criação, leitura de obra de arte e acham que estão no caminho certo. O nome dela é Zilpa Fulco. Diz ela: “Eu estou sozinha e cansada e não consigo encontrar arte-educadores que possam me ajudar nesse projeto. A formação de um profissional, na prática, é demorada e nossa escola tem crescido graças à honestidade de nosso trabalho. Onde e como posso encontrar profissionais com a visão da Ana Mae?”
Ana Mae Barbosa: Olha, eu tenho umas quatro ex-alunas com mestrado, e todas desempregadas. [risos]
Paulo Markun: Então, depois vou dar o telefone dela aqui.
Ana Mae Barbosa: Me telefona que a gente conversa.[risos]
Paulo Markun: E em relação a essa coisa da cidadania, que prejuízo essa lacuna causa na formação do brasileiro?
Ana Mae Barbosa: Eu acho que é um prejuízo de não reconhecimento da imagem do mundo em que você vive, da imagem representada pelos artistas; os artistas reforçam a imagem do meio ambiente no qual eles vivem. Veja bem, você vê uma negra da [pintora modernista] Tarsila [do Amaral]. O que é isso, o que significa isso? Isso pode significar muito para uma classe de crianças, em que haja crianças negras, que dificilmente vêem representada a sua raça com diferentes significados, como tem o quadro da Tarsila, por exemplo. A idéia de raiz que os pés suscitam, a idéia da nutrição que o seio enorme suscita. Então são reforços para você se reconhecer no país em que você vive, se reconhecer como parcela importante desse país, como parcela importante dessa cultura. Então é nesse sentido que eu acho que a arte contribui muito para desenvolver o sentido de cidadania, atentar para diversidade cultural, para começar a respeitar as diferenças entre grupos culturais. Você tem diferenças em uma única pessoa. Eu, por exemplo, pertenço a diferentes grupos culturais, uns majoritários outros minoritários. Então aprender a conviver com isso é tolerância para com o diferente, com o outro. Eu acho que através da arte, através inclusive… Mas depende aí do professor. Ele tem que ter uma escolha muito diversificada, não adianta só dar o código europeu e norte-americano branco na escola. Você tem que procurar a arte feita pelas mulheres, pelos índios, pelos negros, e tentar discutir isso com seus alunos, mostrar a validade, a importância cultural de cada uma daquelas manifestações, sem preponderância de uma sobre a outra. E aí você terá um panorama cultural de seu país. Se você conhece culturalmente o seu país, você tem mais chance de respeitá-lo, e isso para mim é cidadania.
Paulo Markun: Nosso tempo acabou, Ana Mae, muito obrigado aqui pelos seus esclarecimentos, eu agradeço também aos debatedores.

Não abandone seu filho diante da internet

por Ethevaldo Siqueira

23 de novembro de 2008

O mundo vive uma época de endeusamento da tecnologia. Nicholas Negroponte, criador do MediaLab e ex-professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), organiza um movimento mundial para dar um laptop por criança (Programa OLPC, sigla de One Laptop Per Child), como se o computador pudesse fazer o milagre de melhorar a qualidade da educação.

Com a mesma intenção, pais e professores estimulam o uso da internet por crianças e adolescentes, sem lhes dar qualquer orientação e, em especial, sem vigiá-los no uso da rede. O resultado menos negativo é a pura dispersão e desperdício do tempo dos jovens com joguinhos e sites impróprios sem qualquer valor educativo.

Governos anunciam planos para cobrir o País com a banda larga e levar a internet a todas as salas de aula – muito antes de preparar seus professores, pagar-lhes um salário digno e dar às escolas o mínimo de conforto e segurança. A maioria dos estudantes já faz “pesquisas” no Google, simplesmente colando textos, sem compreendê-los, sem nenhuma leitura atenta, sem reflexão e sem nenhum espírito crítico.

O que acontece no âmbito familiar é ainda mais preocupante. Se o leitor é um dos milhões de pais que não se importam com o que seus filhos estão vendo na internet, não deixe de ler o livro Como Proteger seus Filhos na Internet, tradução do original americano How to Protect Your Children on the Internet: A Road Map for Parents and Teachers, de Gregory S. Smith, Westport: Praeger Publishers, 2007, que será publicado em 2009 pela Editora Novo Conceito.

Para o professor Valdemar Setzer, do Departamento de Ciências da Computação e do Instituto de Matemática e  Estatística da Universidade de São Paulo (USP), em resenha sobre a obra em seu site, o livro de Gregory Smith “é um apelo aos pais no sentido de tomarem consciência do que é a tecnologia da internet e como restringir seu uso por crianças e adolescentes para que essa rede não seja mal usada por seus filhos, colocando-os em perigo”.

O LIXO CIBERNÉTICO
É bom lembrar que, por mais benefícios que a internet nos possa trazer, quase metade de seu conteúdo é lixo da pior qualidade, que inclui pedofilia, armadilhas criminosas, propaganda nazista, instruções de como cometer suicídio (com conseqüências trágicas para vários jovens), violência e tentativas de fraude e furto de identidade, assédio e exposição a conteúdo sexual, venda e distribuição de drogas – além da disseminação de vírus e softwares espiões que invadem nossos computadores, furtam nossa identidade e transmitem a terceiros nossos dados pessoais, números de contas e senhas.

O maior perigo para os menores são as armadilhas de pedófilos e predadores, a inadequação de muitos conteúdos da rede mundial e, como diz G. Smith, o fato de todas as crianças e adolescentes serem naturalmente ingênuos, o que muitas vezes não é reconhecido pelos pais.

A propósito, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), com sede em Genebra, lançou uma campanha de âmbito mundial, conclamando todos os países a “proteger a população das ameaças cibernéticas, em especial quando elas têm como alvo as crianças”. Na realidade, a proteção principal deveria vir dos pais e das escolas.

Mesmo reconhecendo esses perigos, a maioria dos pais quase nada faz para evitar que seus filhos acessem a internet – no lar, na escola, na casa de amigos ou nos cibercafés – e corram os mais sérios riscos de se tornarem vítimas de criminosos de todo tipo.

INTERNET PARA QUÊ?
O professor Setzer não considera que haja nenhuma necessidade de uma criança ou adolescente usar a internet. “Mas se algum pai achar, erroneamente, que isso é essencial para seus filhos, minha recomendação é que esteja sempre, constantemente, ao lado deles enquanto usam a internet, controlando as páginas acessadas”.

A mesma consideração vale para o computador: “Aprender a usá-lo também não é necessário. Certamente todos os adultos de hoje com mais de 30 anos não aprenderam a usar um computador quando crianças, e aprenderam facilmente a fazê-lo quando adultos. Não se pode permitir que uma criança use sozinha um computador, carregando nele, por exemplo, os programas que bem entende (na verdade, não entende)”.

Em uma família, um computador deve ser sempre dos pais e nunca de uma criança ou jovem. O maior problema é que muitos garotos têm computador em seu quarto de dormir, totalmente fora do controle dos pais. “Ora, o projeto Um Laptop por Criança visa justamente dar um computador a cada criança, que o levará a todos os lugares (enquanto não for furtado), podendo naturalmente usá-lo sem nenhum controle”, adverte o professor Setzer.

Uma das principais razões alegadas pelos pais para permitir o acesso das crianças à internet refere-se a trabalhos e projetos escolares. É urgente, portanto, conscientizar os professores do imenso perigo a que lançam as crianças e jovens, sem falar nos prejuízos para a educação.

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Reinvenção


A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só – no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só – na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles

RETRATOS DA VIDA – Panorama Biográfico em Nova Friburgo

A Terapia Biográfica tem o objetivo de encontrar sentido através da observação de fatos da própria vida, que são revistos de maneira objetiva, separando o que são fatos do que são sentimentos. A maior causa de sofrimento emocional ocorre por não percerbermos o sentido de nossas vidas. Com a Terapia Biográfica, reconstruimos o trilho que liga os fatos a um sentido ordenado.

Para isto, além de falar sobre os fatos, são realizadas atividades artísticas variadas, que permitem um suporte material para a memória, além de trazer um elemento lúdico que torna esta forma de terapia bem mais agradável. Nesta Vivência em especial, trabalharemos com imagens, principalmente de fotografias dos participantes, resgatando fatos e emoções. A arte faz a ligação do pensar com o sentir, através do agir, sem intelectualizações, quebrando as resistências ao processo da Psicoterapia. Assim, nos propomos metas de mudanças em nossas próprias vidas baseadas naquilo que nos é mais sagrado, nossa própria história.

Em Nova Friburgo, de 15 a 18 de janeiro de 2009, no Morgenlicht.

Coordenadores:

  • Rosângela Cunha

Psicóloga, Gestalt-terapeuta e Terapeuta Biográfica

  • Marcelo Guerra

Médico Homeopata e Terapeuta Biográfico

Escreva para santana@terapiabiografica.com.br ou marceloguerra@terapiabiografica.com.br para mais informações. Ou ligue para falar com um de nós:

(21)7697-8982, Marcelo

(32)8841-8660, Rosângela

VAGAS LIMITADAS

Um casal é 1+1

Este texto é o prefácio da excelente cronista Martha Medeiros a respeito do amor.

Martha Medeiros*

A porta se abre. Ela entra primeiro, e ele logo atrás. Alinham-se e continuam a caminhada festa adentro, acabaram de chegar. Quem são eles? Um casal, apenas. E não importa que haja uma infinitude de casais formados no planeta: sempre que estamos diante de um, algum magnetismo ele nos provoca.

Um casal nunca é uma unidade, por mais que se tenha tentado difundir a idéia absurda de “dois em um”. Esta teoria serve para aparelhos eletrônicos, não para seres humanos. Um casal é formado por duas individualidades que, num determinado momento, cruzaram seus olhares e a partir disso potencializaram suas vidas. Uma das minhas distrações prediletas é observar um casal na fila do cinema ou namorando na beira da praia e pensar: em que circunstância um interceptou o caminho do outro? Talvez tenham sentado lado a lado num avião, talvez tenham se cruzado dentro de um hospital, quem sabe até se odiaram à primeira vista. Quem terá dado o primeiro passo para iniciar uma relação que selou seus destinos?

Este livro que você tem nas mãos conta um pouco sobre os bastidores amorosos de casais notórios. Lampião, o cangaceiro vingativo e violento, era também romântico a ponto de ter casado com Maria Bonita, primeira mulher a marcar presença no interior do sertão. Salvador Dalí, o gênio do surrealismo, inverteu a ordem natural das coisas: enquanto na Espanha era costume as esposas assinarem seus nomes como se elas fossem propriedade dos maridos (esperava-se que Gala assinasse “Gala de Dalí”), ele é que passou a assinar “Dalí de Gala”.

Jorge Amado foi aconselhado por um amigo a não se aproximar de Zélia Gattai porque não era mulher pro bico dele, e ainda bem que homens apaixonados não escutam ninguém. Yoko Ono é acusada até hoje de ter sido o pivô do fim dos Beatles, mas a verdade é que ela e o finado Lennon seguem sendo um dos casais mais emblemáticos do século 20. Napoleão só pensava em guerra? Que nada, era em Josefina que sua cabeça estava o tempo todo, mesmo quando ele batia ponto nos campos de batalha. O que estes artistas, imperadores, heróis, mártires e justiceiros têm a ver com o resto da humanidade? Sabiam que a solidão não soma, apenas subtrai.

Um casal é 1 + 1. Uma tímida com um extrovertido. Um esportista com uma intelectual. Uma sonolenta com um boêmio. Um duro com uma ricaça. São muitos homens e mulheres (e demais arranjos) com bem mais diferenças do que afinidades: almas gêmeas é coisa que não existe, lamento informar. As combinações são sempre bombásticas e efervescentes, pelo simples fato de que ninguém nasceu para ninguém, apenas temos a sorte de vivenciar um encontro que muda o rumo da nossa história. Todo casal é transgressor, todo amor margeia o impossível. Por mais que as revistas tentem dar dicas de sobrevivência conjugal e sinalizem sobre como deve ser um casamento perfeito, a verdade é que cada dupla estabelece suas próprias regras e ninguém consegue catalogá-las: todos os casamentos estão fora dos padrões. Nada é mais exclusivo e dinâmico que um casal. A não ser que já não seja um casal, que os dois tenham se transformado em 1 – 1.

Este livro relembra affairs que se tornaram romances célebres e marcaram época. Numa análise ligeira, parece uma seleção de poucos eleitos que viveram o idílio de uma paixão inesgotável. Mas vamos ser justos: não há entre nós, simples mortais, quem não tenha vivido também uma bela história pra contar.

* Prefácio do livro “Casais – Histórias de amor que resistem ao tempo”, da Editora Nova Fronteira

A Crise

Por Paulo Henrique Schau Guerra –  www.pauloguerra.com

Hoje passei um tempo olhando o mar, a Baía de Guanabara, na verdade, e vi um pai e um filho pescando. O pai já era meio velho e o filho bastante novo, uma criancinha magra com cabelos compridos e loiros. Se a pesca ia bem, sinceramente não sei, mas o que importa é que fiquei um tempo os olhando e pude ver os dois rindo (o pai mais que o filho) enquanto esperavam que um peixe fisgasse a isca. Foi então que uma onda veio, uma onda grande o suficiente para molhá-los por inteiro, e tudo mudou.
O menino se desesperou e subiu as pedras até chegar ao meu lado e o pai continuava na beira da água segurando a vara de pesca, sendo que agora em pé e com o olhar fixo na água. O pai gritava virando para trás de relance: “Fica aí em cima, ein!”; o menino resmungava: “Meu celular tá todo molhado!”. Ali, no lugar mais inusitado, eu entendi o que é uma crise.
A Crise (do grego Krísis) significa, pela sua etimologia, um momento decisivo, uma
emergência, um risco, mas simultaneamente uma oportunidade. Portanto num momento de crise se vê uma encruzilhada em que de um lado há a possibilidade de se abster das certezas e navegar sobre os riscos e do outro há a prostração, a aceitação da derrota ou a equivocada anunciação de uma derrota autoproclamada.
O menino subiu, inexperiente que era em relação às mudanças das águas, e o pai dele manteve-se na mesma pedra em pé puxando a vara e deixando a linha de pesca toda esticada. Já era oito da noite e outra onda podia acometê-lo, mas ele continuou lá, talvez puxando um peixe enorme ou talvez um pneu velho.
Bom, quando você vir uma crise por aí pense nas duas opções que você tem: desistir ou prosseguir, de preferência com uma dose extra de ânimo.

Entenda como funciona o processo de entrega de uma criança à adoção no Brasil

RIO – No Brasil, um bebê só pode ser entregue à adoção depois que a mãe declara, ao Conselho Tutelar de seu município, o motivo pelo qual ela não pode ficar com a criança. A justiça brasileira faz o possível para que o filho fique com sua mãe biológica e, por isso, exige que a mulher passe por uma análise que vai determinar se ela está passando apenas por problemas transitórios, como uma depressão pós-parto ou problemas financeiros. Nestes casos, o bebê pode ficar em um abrigo ou com uma família acolhedora enquanto ela se recupera. (Leia mais: mãe que abandonou bebê será indiciada por abandono)

– Um bebê só pode ser entregue para adoção através do Conselho Tutelar. Abandonar na porta da igreja, entregar para um casal de amigos ou deixar em um abrigo é crime e a mãe, se descoberta, será indiciada por abandono. Apenas o Conselho Tutelar tem o poder de avaliar a situação e determinar o que deve ser feito com a criança. Muitas vezes, a mãe que entrega um filho para adoção, no fundo, quer ficar com ele, mas não está em condições psicológicas ou financeiras para cuidar do bebê – explica a advogada Tânia da Silva Pereira, especialista em direito de infância, juventude, família e idoso.

O processo parece demorado, mas dura, em geral, apenas um dia. Só é possível levar a criança ao conselho se ela tiver uma Declaração de Nascido Vivo (DNV), registro obtido no hospital quando o bebê nasce. Este não é o registro oficial da criança, mas apenas um documento do Ministério da Saúde que reconhece o estado de saúde do bebê. O Conselho Tutelar, depois de ouvir a mãe, decide o futuro do pequeno. Depois de entregar a criança à adoção, os pais biológicos não tem mais nenhum direito sobre ela, e também não podem se arrepender ou exigi-la de volta.

Conheça alguns termos usados no processo de adoção

Conselho Tutelar:

É o órgão responsável por fiscalizar os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Cada município deve ter, obrigatoriamente, pelo menos um Conselho Tutelar com cinco funcionários escolhidos pela sociedade. Clique aqui para encontrar o mais próximo de sua casa.

Família acolhedora:

É uma família que acolhe, por um período determinado, bebês abandonados e crianças ou adolescentes que sofreram maus tratos. Famílias acolhedoras são cadastradas pelas prefeituras do país e recebem uma bolsa auxílio de acordo com o número de crianças acolhidas. Mulheres e homens solteiros com idades entre 24 e 65 anos também podem ser acolhedores. No Rio de Janeiro, quem quiser participar do programa pode saber mais pelo telefone (21) 2293-6479.

Adoção irregular:

Uma mãe que escolhe entregar seu filho a um casal específico sem passar pelo conselho tutelar está cometendo uma adoção irregular e o ato é considerado fraude. Ao contrário da adoção legal, na qual um juiz cancela os vínculos afetivos anteriores, na irregular os pais biológicos podem exigir a criança de volta a qualquer momento.

Se a justiça considerar a adoção fraudulenta pode exigir que a criança seja devolvida aos pais verdadeiros. Entregar o bebê a parentes não é considerado adoção irregular, já que a justiça considera os laços sangüíneos. Acolher para ajudar, com o intuito de devolver o bebê aos pais biológicos depois de um período determinado, também é permitido.

Estado puerperal:

Nos casos de entrega para adoção, a justiça considera o estado emocional da mãe. Em geral, este período é de um mês, mas vai depender de uma avaliação psicológica feita por profissionais. A justiça não costuma permitir que uma mãe com depressão pós-parto, por exemplo, entregue seu filho à adoção.

Parto anônimo:

O parto anônimo é um projeto que prega o direito de a mãe poder entregar seu filho para doção em absoluto anomimato. É adotado em certos países, entre eles França, Áustria, Bélgica e Estados Unidos, e tem como objetivo diminuir o número de crianças abandonadas na rua por causa de processos excessivamente burocrático. Nestes casos, os pais biológicos tem até um mês para se arrepender da decisão. Os países que não adotam o projeto afirmam que o parto anônimo fere a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Entrevista com Joseph Campbell

Campbell

Uma Entrevista com Joseph Campbell

Escrito por Josenildo Marques

em 24 Agosto, 2007

A entrevista abaixo foi publicada no The Goddard Journal (vol. 1, nº 4) em 9 de junho de 1968. Nela Joseph Campbell fala sobre metodologia no estudo dos mitos, hinduísmo e o livro que estava para lançar: o quarto volume de As Máscaras de Deus, que é sobre o que ele chama de Mitologia Criativa. Esse livro ainda não foi traduzido para o português, portanto creio que minha tradução dessa entrevista, provavelmente a primeira a ser feita, possa oferecer uma boa introdução ao tema central do livro.

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I – Em seus estudos sobre mitologia, você tem usado seu conhecimento de psicologia e psicanálise para interpretar mitos. Você acha que mais poderia ser conseguido se houvesse maior variedade de metodologias à disposição?

C – Sou contrário a metodologias por que acho que elas determinam o que você vai aprender. Por exemplo, o estruturalismo de Lévi-Strauss. Tudo o que vai achar é o que o estruturalismo permitir que você ache. E um olhar aberto aos fatos que estão na sua frente vai ser impossível dessa maneira. Parece-me que assim ele se fecha para iluminações.

I – É culpa da metodologia em si ou da inabilidade da pessoa para usar a metodologia como uma ferramenta de maneira mais flexível?

C – Sim, sem dúvida, o caminho flexível é o mais apropriado. Você tem que saber correr, andar, parar e sentar-se. Mas se quiser ficar só sentado, então vai limitar sua experiência.

No anos 20 e 30, o funcionalismo estava na moda. Você não podia fazer comparações interculturais; você tinha que interpretar tudo de acordo com o que conhecia da cultura local. Seria como examinar o apêndice no corpo humano para determinar a condição do homem moderno. Você tem que seguir sua origem e descobrir que uso tinha em tempos remotos.

De maneira similar, muitos dos elementos de uma cultura são vestígios de usos anteriores, de funções remotas. E esses homens, por exemplo, Radcliffe-Brown, em seu livro (que considero esplêndido) sobre os habitantes das Ilhas Andamã, falha em entender aqueles mitos. Eles estão todos na frente dele e sua abordagem não responde as perguntas. Tudo que tem que se fazer é um pouco de comparações e se vai descobrir que as interpretações aparecem. Ficando preso a um método, ele limita sua visão e falha na interpretação daquela cultura.

I – Eu suponho que a tendência a totalizar a metodologia na ciência poderia ser comparada ao processo de totalização na religião, na qual a chance de uma revelação é, de alguma maneira, diminuída se não for erradicada porque as estruturas são congeladas, os rituais são congelados. E a vitalidade, o princípio interior de vitalidade, parece ficar estultificado.

C – Bem, concordo com isso plenamente. E eu acho que essa ênfase na estrutura, neste ou naquele método, é um tipo de desdobramento do monoteísmo. E noto que estudiosos judeus são mais inclinados a isso do que os outros. Ele tem que ter apenas um modo de interpretação. Veja os marxistas e os freudianos – e agora vem o estruturalismo de Lévi-Strauss, e nada mais conta. É incrível. É só a nossa panelinha aqui e qualquer prova que não se encaixe deve ser descartada. Tenho uma teoria sobre isso…

I – Lembro-me imediatamente de O Futuro de uma Ilusão de Freud, em que ele discursa sobre a origem do monoteísmo a partir da estrutura, do pai; e sabemos que as famílias judaicas trazem isso da figura paterna. Talvez essa seja uma das raízes psicológicas para esse tipo de abordagem estreita sobre a existência.

C – Exato. Em Totem e Tabu, Freud diz: “Admito que não consigo explicar as religiões matriarcais”. Esqueci a página, mas está em muitas palavras.

I – É algo que ele não consegue entender.

C – Não consegue porque o que ele está seguindo em Totem e Tabu é a horda do pai, o clã do irmão e as religiões patriarcais. Essa é a seqüência lá…Mas, e o culto à Grande Mãe?

No início, a tradição hebraica é a tradição do guerreiro-caçador, não é a de um povo sedentário que cultiva a terra e faz comércio. Entende? E é dessa última que se origina a grande civilização: agricultura, domesticação de animais, não do caçador errante. Os caçadores são todos guiados pelo princípio masculino: é o homem que traz a comida. Os povos plantadores são guiados pelo princípio feminino: a mulher é análoga à terra, que procria e nutre. Portanto, o Dr. Freud, com seu tipo de antipatia patriarcal para com o princípio feminino, não consegue lidar com isso.

I – Eu sei que não se pode ter uma ação trágica sem uma causa primordial, porque sem um objetivo não há como voltar ou até mesmo uma percepção trágica como acontece com Édipo. Não conseguiria imaginar Édipo Rei sendo escrito por um chinês, ou não poderia imaginar algo como Édipo Rei saindo da cultura oriental. Como você explica isso?

C – Tive uma experiência interessante sobre isso. Quando estava na Índia, associei-me por algum tempo a uma companhia de teatro de vanguarda em Bombai que se chamava Unidade de Teatro. Era uma companhia constituída de indianos não-hindus em sua maioria. O colega encarregado da companhia tinha origem árabe e seu associado mais próximo era um judeu indiano. Há uma antiga comunidade judaica na Índia. Muito dos participantes eram parsis. Adivinhe o que estavam apresentando? Estavam apresentando Édipo Rei. Eles tinham sua clientela, que já estava acostumada a assistir o que estavam apresentando. Eu os assisti quando se apresentaram a seu público em Bombai e, alguns meses depois, quando eu estava em Nova Délhi, eles chegaram e apresentaram Édipo Rei a um público totalmente hindu.

Você não acreditaria! Eu estava lá sentado, já tinha estado na Índia o tempo suficiente para entender o ponto de vista do público – e que horror! Aquelas pessoas estavam completamente chocadas. Eu nunca tinha visto tamanho tapa na cara do público. Eles nunca tinham visto uma tragédia grega; nunca tinham visto uma; não sabiam nada sobre a tradição grega.

A ênfase na Índia é para eliminar o ego: ele não existe. Em sânscrito, não há nem mesmo uma palavra para indivíduo. Os indianos não são indivíduos. São membros de uma casta, são membros de uma família. Eles estão em certos grupos etários; e têm certo temperamento; tudo isso são coisas genéricas. Mas lá estava aquela coisa pessoal do tipo mais violento e a quebra de tabus. O público ficou horrorizado.

Você podia ver que era uma absoluta violação de tudo que já pensaram ver no teatro, em qualquer nível, porque não existe algo como a tragédia no Oriente. Como pode existir uma tragédia quando se acredita na reencarnação? A dramaturgia oriental é um tipo de teatro de conto de fadas: nuances amorosas e situações divertidas, mas nada muito sério. Aquele que sofre na tragédia oriental é aquele quem tem que sofrer de qualquer forma. É esse corpo impessoal. Deixem-no ir – quem se importa?

O herói, o tema enfatizado na mitologia hindu, não é a pessoa; é o Shiva reencarnado que nasce e morre. E os gregos transferem isso para a pessoa. No Oriente, a pessoa que falha na sua jornada é um palhaço, um louco. No Ocidente, é um ser humano.

Lembro que, muitos anos atrás, quando eu estava escrevendo o Herói de Mil Faces, quando quer que eu quisesse um exemplo de fracasso, tinha quer dar um exemplo grego. Por que os heróis gregos são aqueles que sofrem. Os heróis orientais são aqueles que estão na jornada através do mito.

I – Estou tentando me lembrar de um exemplo oriental da tragédia grega.

C – Você quer dizer algo que poderia nos dar um tapa na cara como Édipo Rex fez com os hindus?

I – Sim. Lembro-me que, embora não seja um paralelo, no curso da tragédia de Beckett Esperando por Godot. Para mim, a tragédia nessa peça está no público. Beckett tirou tudo, exceto o trágico, e deixando o trágico, só ele resta. É apresentado só o básico, tão completamente reduzido que a ofensa se torna devastadora.

C – Bem, posso dar um exemplo do que tocar o público ocidental tão forte quanto a tragédia ocidental que aquele público hindu assistiu, e é o sacrifício ritual hindu. Num desses sacrifícios, por exemplo, alguém tem que tirar a pele de uma cabra e tem que tomar cuidado para que a cabra fique viva até que a pele seja totalmente tirada.

I – Esse exemplo seria bom.

C – Esse seria, não seria?

I – E a mitologia africana?

C – Ah, é uma mitologia rica. Os treze volumes de Frobenius – The Atlantis – é magnífico. Muito rico.

I – Você fez algum trabalho nessa área?

C – Ah, sim, muito. Mas ela ainda não foi bem coligida em inglês. Os alemães e os franceses fizeram melhor, eu acho, do que os ingleses. A Inglaterra estava mais, sabe, no Congo, com armas e câmeras…

I – Stanley e Livingstone…

C – Sim. Os alemães e os franceses foram até ela. Agora os ingleses estão indo. Para mim, a coisa mais interessante nos estudos africanos recentemente é esse alinhamento da cultura nok com a cultura effie, validando a intuição que Frobenius tinha no início do século, da antiguidade daquele complexo cultural na África ocidental, datando-o em cerca de 1000 a.C. Frobenius foi o primeiro a reconhecer e estudar a África como uma unidade histórica, não apenas como um bando de tribos selvagens.

Por que Frobenius ainda não foi traduzido para o inglês?

C – Eu descobri Frobenius no período em que estava lendo como um louco durante a Grande Depressão, antes de 1932. Por volta de 1939, estava tão entusiasmado que entreguei os livros de Frobenius ao meu agente literário para ver se conseguíamos um editor. Tenho as cartas desses editores: “talvez interessem a alguma universidade afro-descendente, mas…” Por isso Frobenius ainda não foi traduzido. Mas o verdadeiro motivo é que a Sociedade Antropológica Americana não concordava com as proposições dele – ela é um desses grupos monoteístas. Frobenius defendia a idéia da difusão; ele era um difusionista, que é um palavrão para a Sociedade Antropológica Americana. E esse homem que era grandemente respeitado na Europa é desconhecido aqui.

Tenho uma amiga que escreveu livro sobre questões políticas internacionais e foi a um editor que conheço muito bem. O livro foi rejeitado por esse editor porque ela só citava Frobenius.

I – Estou curioso para ver seu quarto volume.

C – O quarto volume vai sair no dia 20 de maio. Daqui a um mês depois de amanhã – e acredite – estou contente. Trabalhei nele por quatro anos. Demorou um ano para os editores conseguirem publicá-lo. Foi um pouco complicado, mas não vai saber quando lê-lo.

I – Você poderia falar um pouco do que trata neste volume?

C – Claro. É um livro que trata do que eu chamo de mitologia criativa. Na mitologia tradicional, à qual os três primeiros volumes são dedicados – a primitiva, a oriental e a ocidental – os símbolos mitológicos são herdados pela tradição e o indivíduo passa pelas experiências como planejado. Um artista criativo trabalha de maneira inversa. Ele passa por uma experiência de alguma profundidade ou qualidade e procura as imagens com as quais representá-la. É o caminho inverso. Por isso o título do livro é Mitologia Criativa.

Ele trata do primeiro problema que é a experiência estética, que eu chamo de “apreensão estética”, e então apresento uma análise da tradição imagética que os artistas modernos europeus herdaram. Temos a antiga tradição da Idade do Bronze; temos as tradições semita e hebraica; temos as tradições clássicas gregas. Também temos as tradições dos cultos de mistério e a tradição gnóstica; temos a tradição muçulmana, que era muito forte na Idade Média; temos a tradição celta e germânica e assim por diante. Esse é todo o vocabulário; é um tesouro maravilhoso no qual o artista vai buscar suas imagens.

De fato, elas vão coagular com ele se ele for um homem meio letrado. As imagens virão e vão se combinar com o que ele está dizendo. E eu cito como meu documento principal a tradição da literatura secular européia dos séculos XI e XII. Para juntar tudo isso, peguei a literatura que lidasse com temas comuns. Os dois temas comuns que, para mim, parecem apresentar uma influência dominante na escritura européia ocidental são o tema de Tristão e o do Santo Graal

. Começo com um grupo de escritores do fim do século XII e início do século XIII. Aí apresento ecos deles, primeiro em Wagner; depois a constelação em volta dele: Schopenhauer e Nietzsche; e seguindo até, é claro, Mann e Joyce

. Então, de maneira geral, vou e volto com o tema da terra devastada.

Rapaz, não é excitante? Esse conflito entre autoridade e experiência individual. Esse é meu tema principal do começo ao fim. E com ele vem a afirmação do indivíduo em sua experiência individual que só é possível hoje no mundo ocidental. Nossa religião foi importada do Levante com seu autoritarismo e até mesmo com a revolução protestante, que foi um tipo de triunfo do espírito individualista europeu, ainda apegado à Bíblia, então você tem que acreditar naquela coisa estúpida escrita Deus-sabe-quando. Mas a verdadeira literatura secular se desliga disso. E esse desligamento acontece com o Graal. É claro que ela começa a florescer justamente na época de Inocêncio III, o mais autoritário dos autoritários, mas acabou – parou bem ali, por volta de 1225-1230. A Inquisição é trazida à baila em 1232 e aí temos que esperar. E aí acontece a grande mudança. É claro que aí tenho que fazer uma ponte. Tenho que ir do começo ao fim. Mas é incrível o quanto devemos a uns poucos que fizeram tudo o que temos, que tiveram a coragem de dizer ‘vocês estão errados’. Eles são meus heróis. Mas temos também uma heroína, a primeira, e é ela quem começa tudo, seu nome é Heloísa. A Heloísa de Abelardo, ela é a rainha do livro. Em suma, é isso.

I – Você achou difícil juntar todas essas coisas e chegar a essas conclusões?

C – Ah, não, nenhum problema; foi o material mitológico que me mostrou tudo isso. Não tive problemas em compor as idéias desses livros porque tenho lido esse material por literalmente quarenta anos. O problema foi comprimir tudo em quatro volumes. Minha intenção inicial era um volume, e foi isso que combinei com a Viking Press. Minha cabeça estava estourando e me lembro vividamente que, num dia de manhã, acordei às quatro da manhã sabendo que eram quatro livros, sabendo sobre o que tratariam, engatinhei para fora da cama, de cabeça, para não incomodar minha esposa, e fui ao quarto de estudos e planejei a coisa toda.

I – Engraçado que tanto William James quanto Freud tiveram experiências semelhantes quando estavam nessa fase criativa. Freud acordou às duas da manhã e James, às três.

C – E eu, às quatro…está vendo?…Por isso eu tinha mais a dizer!

Além disso, permito-me ir mais passionalmente do que ia nos livros anteriores porque realmente penso que o clero merece uma boa sova. Eles sabem que o que eles estão ensinando já ficou para trás, mas ficam tentando trazê-lo de volta. Recentemente tenho tido experiências bem agudas nesse contexto. Aqui estou eu, alguém cuja vida toda foi dedicada à mitologia, e a igreja agora, parece, está interessada em mitologia. Então eles me convidam para esses diálogos e triálogos e tetrálogos e assim por diante. E quando coloco o que considero o credo tradicional cristão, até mesmo os padres anglicanos levantam suas mãos e dizem, “Ah, mas não acreditamos mais nisso”.

Mas eles ainda continuam com aquele livro. O que eles acreditam agora é no amor e na humanidade e tudo isso. Eu digo a eles: bem, você acha isso nos Upanishads, em Lao-Tsé; você pode achar isso em qualquer lugar, então qual é a sua declaração? Eles continuam afirmando que são únicos. Ora, São Tomás de Aquino disse que até um grego acreditava em Deus, mas um grego não acreditava que havia um pai, um filho e um espírito santo; que o filho tornou-se homem e foi crucificado e através dessa crucificação redimiu o homem do pecado original. Coloquei isso há apenas cinco dias e o bispo Fulano de Tal disse, “Ah, mas não falamos mais assim”.Então, o que dizem? Ainda assim, eles continuam com aquela reivindicação. Estão protegendo sua fé, estão mesmo – isso é engraçado. Esse movimento ecumênico na Igreja Católica é uma piada porque estão se apegando a sua exclusividade. Estão tentando dizer, sem dizer abertamente, que você tem quer ser batizado para ser salvo – não podem dizer algo diferente e continuar sendo católicos.

O homem é redimido pelo sacrifício de Cristo; participa-se do sacrifício participando dos sacramentos, que foram fundados pelo próprio Cristo e, fora disso, “fora da igreja não há salvação”. E com relação aos protestantes, sempre me lembro do personagem Stephen Dedalus de James Joyce, que diz no final do Retrato, quando lhe perguntam “Você vai se tornar um protestante?”, e ele responde, “Perdi minha fé, mas não perdi o respeito por mim mesmo”.

Paz e Dinheiro

>>Um artigo escrito pelo Lama Gangchen, um grande mestre da vida.

Sem medo e mais negócios rentáveis com mente clara e estável

O dinheiro, muito ou pouco, é uma das grandes preocupações da vida: o medo de perdê-lo é o mesmo de não o ter. Praticamente somos todos escravos do dinheiro, e alguns chegam a considerá-lo como o verdadeiro deus. Temos a tendência de nos identificarmos com a nossa conta bancária e quando o saldo abaixa, o mesmo acontece com nossa auto estima….

Infelizmente as dificuldades econômicas não só destroem nossos lares como podem destruir nossos relacionamentos e nossa família: isso é o trabalho da nossa mente. Se há um colapso na bolsa ou a inflação galopa, acontece a desintegração imediata de nossas riquezas materiais resultando num risco para a estabilidade de nossas vidas – nossa mente enfraquece gradativamente esmagada pelo medo, raiva e frustração. Por outro lado, não podemos pensar em poder controlar os inúmeros fatores que influenciam a economia e o trabalho mundial. O que podemos certamente fazer no entanto, é desenvolver nossas qualidades internas que não estão sujeitas às oscilações do mercado financeiro… Nesse sentido, podemos aprender a manter nossas mentes estáveis e calmas em qualquer circunstância. Com a mente estável, saberemos melhor como incrementar nossos negócios, ou sustentá-los em caso de queda, porque a paz nos deixa sem medo.

Há aqueles que acham que a paz nos deixa menos fortes. Não é verdade. Exatamente ao contrário, é uma fonte poderosa de energia que pode ser usada para promover sua própria imagem social e aumentar as rendas. Tente organizar seus negócios de acordo com a ética da não-violência aos outros e ao ambiente: você vai se dar conta que a paz compensa, e como! Aquele que usa da agressividade para vender melhor seu trabalho é quem está enganado. É, de longe, o mais inteligente aquele que usa a energia positiva da não violência, e o calor humano é que gera produtos de alta qualidade. Naqueles momentos escuros será muito mais fácil discernir as soluções dos problemas estando com a mente pacifica, clara e calma. Só é possível enfrentar o stress e o medo de perder o nível social, a incerteza e a alienação do trabalho se desenvolvermos amor e compaixão, qualidades que são mais úteis que status quando se está em dificuldades.

Para nos reconciliarmos com o dinheiro, comecemos por rejeitar qualquer trabalho e investimentos não éticos. Vamos educar a nós mesmos, os nossos administradores e os nossos empregados para o uso do dinheiro de acordo com a lei da não violência, assim como a da cooperação, a da tolerância, a da paciência e a da compaixão. Qualquer negócio nutrido por energia de paz interna e por uma atitude feliz e altruísta está predestinada a ser bem sucedida e automaticamente se tornar mais estável e forte.

Vamos “financiar” nossa paz interna. É o melhor investimento que existe. Paz é um commodity que nunca vai cair e sempre estará na moda. Façamos as pazes com o dinheiro.

T.Y.S. Lama Gangchen